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30/08/07

NOTAS DE MÚSICA

Georg Philipp Telemann (1681/1767)

Por norma gosto de chegar cedo aos acontecimentos, para poder olhar com tempo e aumentar o prazer de ver, ouvir e, sobretudo sentir. Foi pelo fim da tarde, bem pelo fim, naquela hora em que o crepúsculo faz a separação entre esses dois momentos do dia e vai povoando de sombras os espaços que o sol vai abandonando na sua partida para além do horizonte. Havia sossego, pontas de serenidade até, por aquelas ruas curvilíneas e antigas. Uma presença aqui, outra além, mas sem quebrar aquele encanto que quase roça a magia. Tão entretidos ficamos na contemplação que quando a luz da noite baixa, nem damos pela sua chegada.
A igreja matriz fica num largo demasiado escasso para o seu tamanho e para a grandeza que se pretendeu. De qualquer forma, é a primeira, a maior, a mais elevada. Exteriormente não parece ter a grandeza que lhe foi atribuída. Sente-se o porte, pressente-se a presença, mas algo na configuração da pedra parece retirar-lhe aquela magnitude que pensamos, deveria ter. Mas, quando nos aproximamos e erguemos o olhar para o céu, para esse infinito apontado pelas torres sineiras, sentimos poder e, esse era objectivo, mostrar que somos parcos face Àquele que se pretendia honrar, sobrepondo aquela pedraria e formando um conjunto para abrigo das almas e prestação de vassalagem a quem é devida.
Foi pois com estas sensações no pensamento que entrei e procurei assento no penúltimo banco. Dali auscultaria a presença dos que entravam, contemplaria todo o claustro e abarcaria os sons que bailassem entre os altares e o tecto. O interior era barroco naturalmente como os seus duzentos e cinquenta anos apontavam e as malhas dourados em grossos rebuscados davam-nos essa sensação de ostentação que desejou quem assim enfeitou. Num tempo em que os valores feudais ruíam e a burguesia endinheirada e enriquecida se preparava para o último assalto da fortaleza do Estado, as igrejas acompanhavam o seu tempo, sobretudo, o do ouro que parecia chegar à pátria em magotes sucessivos. Foi sempre essa ostentação que perturbou. Prefiro a nudez da pedra, a simplicidade do frio granito, àquele calor que parece emanar daqueles altares revestidos a talha dourada. Essa magnífica mulher de letras que foi Marguerite Yourcenar escreveu nos seus “Arquivos do Norte” que “toda a arte barroca glorifica o desejo do poder”. É pois esse intento que me perturba o sentimento e me desgosta a alma. Esses caminhos de Deus, ou melhor, dos homens que se dizem de Deus, pelos corredores dos palácios, sempre me afastaram. Talvez por isso, procure mais refúgio na escuridão do românico do que na luminosidade do gótico, apesar do fascínio que este me provoca. Mas, do barroco nunca. Senti pois, alguma tristeza ao pensar que dois dias antes não compareci em S. Pedro de Rates.
As pessoas foram chegando e fui observando, tentando adivinhar, vidas, pensamentos, razões pela preferência por aquela música erudita, tão diferente, tão introspectiva, face ao ruído que nos cerca. Não, não era a burguesia local, muito menos essa grande burguesia ostentatória que ali tão bem combinaria com o barroco. Talvez comerciantes, quadros intermédios e, muita gente, que definimos como simples, seja lá o que for que isso signifique. Sobretudo, muita gente, que num primeiro olhar não identificaríamos com a música que desejávamos escutar. Saberiam ao que iam ou, ali estariam pela força da igreja e da vontade de Deus? Que presunção a minha. Quando os primeiros cânticos do Coro da Gulbenkian se ergueram com a música de Pêro de Gambôa e de Francisco Almeida, não foi difícil perceber o gosto e o prazer da música que ali os levaram. Ao sussurro do antes, sucedeu um silêncio cúmplice com os sons, durante o tempo em que os instrumentos e as vozes os soltaram. Por mim, que certamente era o que menos conhecia de música, fiquei pelo prazer de ouvir, essa letícia de galopar a música em viagens pelo tempo reflectindo sobre a caminhada humana pelas veredas da história. Assim foi essa noite e assim seria dois dias depois quando o oboé de Marcel Ponseele me banhou com os sons de Bach, Joahnn Sebastian, Telemann, Joahnn Fasch e Alessandro Marsello. O fascínio do século XVIII com o acompanhamento dos Il Gardelino. É assim, a vida vale por estes pequenos momentos e, a música, esta música, concede-me intervalos de refrescante água onde deixo mergulhar a memória, onde procuro caminhos, e tento identificar verdades. Identificar verdades, escrevi eu? Talvez essa tenha sido uma tontice dos Homens, mas eu chamo-lhe assim quando procuro conhecer os trilhos que possam conduzir a um mundo diferente, onde talvez esta música deixe de ser erudita e possa ser do universo mais vasto do comum dos mortais, como mais uma vez, aqueles que me acompanharam na audição magnífica daqueles intérpretes, me ensinaram a ver. O entusiasmo com que aplaudiram em gesto de gratidão por momento tão sublime, solicitando mais uns minutos de fascínio, mostraram-me mais uma vez que as verdades estão quase sempre onde não pensamos encontrá-las.
Alcino Silva

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