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30/11/07

PERSONAGENS

Alcino Silva



Houve uma época em que a compreensão da vida era mais simples. As sociedades eram compostas por grupos sociais bem distintos, diferentes nos seus interesses e na posse da riqueza criada e a comunidade de cidadãos distinguia-se pelos que só tinham direitos e os que só tinham deveres.

Hoje, contudo, como num baile de máscaras, na aparência, tudo se alterou, mas na verdade apenas misturando e confundindo palavras. O capitalismo acabou, as classes diluíram-se como se todos passassem a dispor das mesmas oportunidades e as mesmas posses e alguns chegam a acreditar, ou pelo menos fingem que acreditam, que vivemos uma paz eterna elevando à categoria de missionários os que detêm o poder pelo facto de, sob o seu ponto de vista, os de baixo não serem capazes de governar, pelo que os de cima, embora não o desejando, cumprem uma missão não só histórica como divina de dirigir as nossas sociedades. Para que tudo seja perfeito criaram um sistema democrático de partido único de duas cabeças e decretaram o fim da história. Houve até quem acreditasse.

Naturalmente que a mistificação não escondeu o essencial; os grupos sociais continuam a existir, a posse da riqueza gerada pelos que trabalham continua a ser possuída por uma camada de parasitagem minoritária que através do dito sistema democrático pervertido não perde o controlo do aparelho de estado perpetuando dessa forma um sistema de poder milenário e as diferenças entre os grupos de cidadãos que vivem do trabalho e os outros que se apossam da riqueza criada alcança diferenças que raiam o escândalo e o absurdo, deixando comunidades no limbo da revolta.

A História sempre teve personagens colectivas e individuais. Enquanto as primeiras ficam essencialmente no domínio do anonimato, as segundas adquirem maior ou menor importância pelos feitos, bons ou maus, que realizam. Algumas, chegam a adquirir papel determinante no rumo da vida, do pensamento e do saber das sociedades onde medraram e se desenvolveram e nem todas pelas melhores práticas.

O último século, nomeadamente na sua parte final, assistiu ao aparecimento de diversas caricaturas de homens que se tornaram personagens, pela sua incapacidade ou pela maldade que colocaram nos actos, com que violentaram interesses ou usando de mistificação, adulteraram a história, distorceram aspectos da vida, chegando a aparecerem como homúnculos sem dignidade. Os exemplos abundam, tornando-se até difícil fazer uma selecção mesmo que a título de amostragem.

Um cadáver que se arrasta pela Europa e que dá pelo nome da Javier Solana foi de pacifista na década de 80 a dirigente da NATO tornando-se um criminoso de guerra que se passeia impune pelos corredores do poder com o ar seráfico de homem sério, pese embora ter sido o instrumento que deu ordem de avanço à força aérea daquele agrupamento de predadores para que bombardeasse indiscriminadamente o território da Sérvia, fazendo recuar 50 anos as estruturas industriais e rodoviárias daquele país, arrastando para a morte 5000 pessoas, ao mesmo tempo que anatemizava o presidente eleito daquela nação, o qual viria a acabar cobardemente assassinado às ordens do poder europeu, após encontrar-se prisioneiro durante cinco anos sem que fossem capazes de provar qualquer uma das acusações que lhe faziam.

Um mentiroso com ares de aldrabão, passou de vilipendiar a burguesia, a partir da raiz da classe operária do MRPP, para primeiro-ministro que intrujou o país e o mundo, recebendo como prémio a presidência da comunidade europeia.

Mas há uma personagem que me fascina de forma muito sensível. No passado dia 18 de Outubro de passagem por Lisboa pude assistir a uma manifestação do mundo do trabalho convocado pela CGTP. Dizem ter estado presentes cerca de 200.000 pessoas. Mais dez menos dez, a coisa terá estado por aquele número, quando meses antes tinha havido uma mobilização de ordem numérica idêntica e um ano antes tal cenário tinha sido iniciado com ordem de grandeza semelhante. Presenciei impressionado o desfile daqueles cidadãos que democraticamente mostravam o seu descontentamento e expressavam a exigência dos seus direitos e, vivêssemos nós numa sociedade verdadeiramente democrática, tais exigências deviam constituir direitos bem definidos e praticados sem rebuço. Ao fundo o secretário-geral daquela organização fazia o balanço das reclamações democraticamente apresentadas e incentivava os trabalhadores presentes a não desanimarem da exigência a que constitucionalmente tinham direito e apontava caminhos na concretização desse objectivo. Algum tempo depois em vários canais de televisão aparecia aquela figura, mais tartufo do que homem com aquele ar que nos faz lembrar a doçaria conventual acompanhado da sua pasta misteriosa, em plenas galerias do palácio a sorrir para os seus comparsas da farsa a que submetem o país. Embora usufruindo do dinheiro despendido pelos que trabalham, passa o seu tempo no que chama diálogo social, que nada mais é do que o embuste que tapa a entrega de direitos tão penosamente alcançados pelas gerações que nos precederam. Absolutamente alheio aos milhares de pessoas que expressavam publicamente as suas preocupações e reclamavam dos seus direitos, passeava-se pelo paço em secretas negociatas que apresenta como vantagens para aqueles que entrega sem um protesto, sem uma reclamação, sem a dignidade de quem exerce um mandato que devia conter essas obrigações.

A pergunta que se coloca é saber até quando os cidadãos, aqueles que o são em plenitude, tolerarão esta gente indigna que cavalga impunemente nas costas de quem tem razão? Sim, até quando?


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