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01/01/08

SEI MENOS DO QUE UMA MIÚDA DE TREZE ANOS

Mário Faria

http://www.bowdoin.edu/~sputnam/rothbart-temperament


A solidão dos "sem curriculum" é terrível. Na altura do Natal a situação paradoxalmente piora. Não recebemos cartões, excepto aqueles que enviamos endereçados a nós mesmos, para a mulher e os filhos não ficarem com a ideia que não merecemos reconhecimento ou não somos sequer lembrados e merecedores das palavrinhas e dos votos, do costume.

A situação agrava-se inexoravelmente, quando atingimos a reforma. É a triste sina de um sexagenário. Para além do esquecimento, somos zurzidos com as críticas do costume : “então já reformado e nós a pagar o luxo”. Tomam-nos como espécie de parasitas, que os no activo têm de suportar, com muitas lágrimas e suor. Reformado e sem curriculum, tende a valer zero na escala social.

Tive de melhorar a imagem. Inactivo, mas interventivo, eis a solução. Tive que arranjar forma de ser reconhecido. Pelo menos, lá na rua. Entendi valorizar o meu perfil de intelectual. Deixei crescer pêra e passei a usar os cabelos artisticamente desalinhados à Pacheco Pereira. Visto informalmente, mas tudo roupas de marca. Passei a andar sempre com um livro debaixo do braço, de preferência de : Proust, Jorge Luís Borges, Nietzsche, Maquiavel ou Sun Tzu. O Zé da Frutaria, a Svetlana (universitária russa a viver em Portugal), o pastor Floribelo, o Luís do Café, o Ilídio (Técnico de Arrumação de Carros), o Silva (porteiro do bar e da pensão), o Santos (o Príncipe das Retrosarias) e a Rute Marlene (a Rainha do Peixe) ficam muito impressionados e tomam-me como um verdadeiro intelectual, o que muito me envaidece. Questionam-me sobre os mais diversos assuntos, como se fosse uma enciclopédia. Já andava cheio de os ouvir. Comecei a aparecer com menos frequência. O dia passou a ter mais horas, e os meus pés começaram a queixar-se por lhes dar excessivo uso. Tinha que tomar uma decisão e reverter a situação. Resolvi, então, animar um encontro semanal, “a quadratura do círculo do meu bairro”, para discussão aberta sobre temas de interesse geral. Sou o moderador e o assunto é escolhido por votação dos participantes. A selecção dos temas, a votação, a discussão prévia e informal em jeito de aquecimento, a preparação exigida a um moderador, ocupam-me, motivam-me e dão descanso ao corpo. Sinto-me realizado com a iniciativa. No próximo encontro, debateremos o tema : “ As claques e as profecias de Pacheco Pereira”. Ando feliz !

Custa-me confessar que nas épocas de S: João fujo desta gente, porque nos concursos de quadras de S. João nem uma menção honrosa recebi. Fui sempre desclassificado. Felizmente, que os meus amigos desconhecem essa participação, porque concorro sob pseudónimo. O Zé da Frutaria que tem ganho quase sempre, não me larga nessas alturas. Pede-me, venenosamente, para participar. Acho que desconfia que vou lá, mas que sou um falhado em quadras. Na dúvida, ultimamente tenho aproveitado para, nesse período, ausentar-me do Porto e gozar um curtíssimo período de férias.

Passeava os meus livros pelos sítios do costume, quando o Zé da Frutaria (ultimamente, sempre acompanhado pela Rute Marlene) me veio convidar para participar no festival de quadras natalícias lá do bairro, que ia organizar, sob os auspícios da Junta de Freguesia. Fiquei atrapalhado, disse-lhe que estava muito ocupado, mas o gajo não me deu baldas. “O grupo precisa de todos para conseguir um brilharete. É indecente, se não participar.” Fiquei aflito. O tipo encostou-me às cordas. A Rute Marlene, sorria com malvadez. Vou fazer os possíveis por desaparecer, mas tenho de arranjar um pretexto invencível. Provavelmente passarei o primeiro Natal fora do País. Mas, temo que a sucessão de fugas os leve a multiplicar as iniciativas. Estou num dilema, e tenho que sair por cima. O reconhecimento que recebo, assim o exige. Tenho que pegar o touro pelos cornos. Talvez aproveite um poema de Natal que a minha neta escreveu para um trabalho escolar alusivo à quadra. A minha neta (é muita criativa) aceita “emprestar-me” o dito, e promete silêncio total, desde que na noite de Natal, depois do bacalhau e das rabanadas, mas antes da abertura das prendas que estão no sapatinho, faça um brinde, gritando bem alto : “sei menos que uma miúda de treze anos”. Vou ter de aceitar. O poema é naif, mas giro. O segredo fica em casa, bem guardado. Malefícios da TV, mas noblesse oblige. Acho que me vou safar.


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