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01/06/08

AS PALAVRAS E A MÚSICA

Alcino Silva

A igreja de S. Pedro de Rates


as palavras


Estava fria à noite, sentia-se o vento a rondar-nos o corpo a querer beijar-nos a alma. Estava perdido, é certo, por aquelas dores imensas que me tolhiam os movimentos e me alimentavam o desejo de descanso, de me estirar e semicerrar os olhos, fechá-los mesmo em devaneios de sono ou de sonho. Não, de sono que as dores eram intensas. O vento e a noite aperceberam-se daquela debilidade e não me pouparam. Mas a vontade de escutar as palavras era superior a toda essa fragilidade, pelo que por ali me deixei. O lugar, o espaço carrega certa magia, pelo passado, pelo que foi, por todos aqueles que viu passar. Agora, é dos livros, das letras, do convívio, da cultura, como o foi nessa noite. “Tantos condenados por crimes… prescritos” era o tema a apresentar, a lançar sobre os ouvintes, aqueles que ali se reuniram para escutar. Seguro as páginas amarelas da capa e desfolho em diálogo com as palavras que ali deixaram. Histórias de gentes traçadas por subidas e descidas, interrompidas aqui e além, continuadas depois. Nas primeiras folhas recebemos a visita de Borges e as suas palavras arrebatadoras:

“O tempo é a substância de que estou feito. O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo”.

Ouviu-se então o som triste e lento das violas a romper o espaço na semi-obscuridade das luzes, em sons tangentes, entre graves e agudos fazendo-nos voar as ideias à procura da noite com os escassos raios luminosos de uma lua alva em crescente. Por fim, o poeta lançou o seu clamor ao vento, fazendo desfilar em tropel palavras que se julgavam adormecidas. Como carros de combate os poemas seguiram estrada fora, vergastando as injustiças, alimentando os sonhos e dando ânimo aos Homens que não desistem. “Não sei para onde vou, não sei por onde vou, sei que não vou por aí”. Assim ficamos, a escolher cada um o seu caminho.


a música


Passada a barreira do outeiro que dá pelo nome de serra, encimado por uma floresta de eucaliptos, desprende-se ao olhar um extenso vale em planície, verde, assombrosamente verde e cultivado quase a perder de vista. A amenidade do clima que se soltava naquele fim de tarde, emprestava um repouso a tudo o que era visível. Apetecia prosseguir e desfrutar, saborear a amabilidade daquele sol que caía em réstias de calor que se transformava em conforto para o corpo e para o pensamento. No fim do caminho, invadimos a velha praça ao lado da vetusta igreja e percorremos as vendas daquelas gentes renascentistas nos seus trajes de trabalho. Quase sem darmos por tal, no meio dos couros, dos cabedais, das carnes e dos artesãos os sons suaves, belos das gaitas e da flauta trauteados em cadência pelo bombo, romperam a pacatez da feira e fizeram saltar a alma do consolo do corpo. A música voava, saltava por entre o gentio e fazia vibrar o desejo, a vontade de dançar, mover os membros, girar a cabeça. Eram sons doces, sem agressividade, sem agudos, apenas o bater cadenciado das mãos e as notas da gaita como um aroma a espreguiçar-se por entre as ruas estreitas. Afastei-me para o interior da igreja e mesmo ali chegava ainda como uma carícia aquele toque polifónico que rapazes e raparigas vindos de longe estendiam como um abraço. Minutos volvidos, fez-se silêncio, as vozes deixaram de sussurrar, a luz das lâmpadas faziam ressuscitar as antigas velas de lume aceso que se erguiam ao longo das colunas e o dia que ainda restava espreitava curioso pelos orifícios que o românico deixara nas paredes grossas laterais. As vozes do coro surgiram lentas, em sons leves e foram ondulando pelas pedras, subindo em cordão e atravessando a nave pelos arcos góticos que desejavam o futuro em plena idade média. Gotas e gotas de prazer sereno vogavam agora ao longo de toda a nave, procurando espaço por onde saltar para o mundo. Por vezes aqueles sons baixavam e bailando por entre todos aqueles que imobilizara pela tranquilidade dos tons, surripiava-lhes a alma e levava-a enquanto saltavam com leveza de pedra em pedra. Depois saíram, aproveitando uma nesga de luz, seguiram em viagem pelo mundo e enquanto aqueles toques quase divinos se espalhavam pela terra, quase acreditávamos serem suficientes para apaziguar as guerras e a fome, acalmar a injustiça, serenar a violência dos poderosos. É fácil deixarmo-nos embalar pelo sonho. Saí à procura da alma e senti que a estrada não tinha fim. Vencida a barreira de terra e árvores, avistado o mar que parecia longínquo, percebemos que a música disparava toda a artilharia da poesia das palavras e da vida e quando a primeira curva surgiu, percebi que seguia em frente, sem paragens, sem destino, voando apenas para o infinito do sonho. Deixei a igreja de Rates quando os primeiros alvores da noite beijaram o vale, profundamente agradecido ao coro gregoriano La Santa que veio de Ávila para me levar o pensamento em delícia até ao olhar dos que mais amamos.


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