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01/07/08

LUGARES

Alcino Silva

Miguel Torga (1907/1995)

Há lugares que não conhecemos, mas conseguimos que a imaginação os construa à medida do que supomos. Há outros lugares que quando os conhecemos superam as nossas expectativas. Há ainda lugares que não os conhecemos, mas que nos seduzem no primeiro momento da chegada e essa sedução mantém-se de forma crescente para o resto do tempo que vivemos.
Pitões das Júnias é uma aldeia que fica em plena montanha, ligeiramente protegida, mas praticamente aberta, ao vento, ao frio e à inclemência do sol no Verão. Povoado fronteiriço nas agruras dos picos mais agrestes do Gerês, esteve sempre afastado da vida e dos homens. Se sobreviveu aos séculos, não deixou de pagar o preço de um isolamento que a deixava a muitas horas de marcha da vila sede de concelho. Esse isolamento acabou por a preservar dos olhares e da maldade do progresso, oferecendo-nos hoje ao olhar a beleza e o passado de aldeia comunal.
Caminhando nas suas imediações, encontramos a cerca de 20 minutos uma garganta estreita ainda mais isolada e que apesar do seu aspecto idílico não engana quanto à dureza de se ali viver. O ribeiro corre por entre as pedras em saltos de divertimento mas apressados adivinhando já um pouco abaixo a queda através da qual se precipita em enxurrada destruidora. Na margem esquerda a terra ergue-se, em espaço dividido com as pedras, montanha acima, não deixando que a cultivem. Na margem direita um espaço mais amplo parece atrair os homens para o cultivo ou para a pastagem do gado. Contudo, longe da aldeia não se pode dizer que é um lugar acolhedor e cativante para além do romantismo que carrega a beleza da paisagem. Se é assim hoje, suponha-se há mil anos atrás quando a própria aldeia se presume misérrima e tudo à volta devia acumular solidão e mais solidão.
Pois foi neste cenário que em 1147 terá nascido em pedra dura e áspera o mosteiro beneditino de Santa Maria das Júnias. Oito séculos passados ali encontramos em ruínas que nos sangram a alma, a igreja com a traça românica de então e riscos góticos posteriores, e o edifício monástico onde ainda se consegue perceber o claustro, com os seus quatro lados que, segundo um Guia do Mosteiro das edições Die Apfel, representavam os momentos da «leitura divina», a leitura, a meditação, a oração e a contemplação. Visíveis são também as ruínas da sala do capítulo, da sacristia, das celas, das dependências e da cozinha. No exterior e na margem esquerda, o moinho dava consistência a uma parte da alimentação dos monges. Diz-se também no Guia citado que este lugar “reunia as condições necessárias à vida cenobítica no rigor de Cister: Silêncio, afastamento de povoados, proximidade de um fio de água e terra suficiente para ser trabalhada para o alimento da própria comunidade. O Mosteiro tinha condições de auto-suficiência na pobreza e na simplicidade da vida. Até a produção de lã, que não era tingida em sinal de pobreza e se usava para tecer e fazer os hábitos brancos dos Monges, era proveniente da criação de carneiros dentro da propriedade”.
A visita ao lugar faz-nos parar e viajar no tempo. Ali em contemplação percebemos que toda a grandeza do presente perde sentido face à vida que se pode imaginar dos monges nos séculos que ali passaram até ao fim da época feudal. O silêncio, a solidão e uma vivência quotidiana de trabalho carregado pelo isolamento, só podia encontrar repouso na contemplação da paisagem terrena e celestial. O olhar dos que ali viviam dividia-se entre o verde da terra e o azul do céu e num espaço com esta dimensão o seu pensamento só podia de facto encontrar consolo em Deus que se estendia, certamente poderoso e divino sobre as suas cabeças e as suas vidas. Pensarmos no êxtase que seria no amanhecer da montanha escutar os cânticos gregorianos dos monges a domar as pedras e a abraçar as árvores, deixa-nos por completo presos na alegria de perceber a vida.
Miguel Torga visitou o lugar em 1983 e na grandeza das suas palavras deixou-nos uma mensagem, ao mesmo tempo real e bela, da terra e dos homens. “Só vistas, a aspereza deste ermo e a pobreza do mosteiro desmantelado”. De facto, só uma visita sem tempo marcado ao local nos permite, mais que ver, sentir, a dimensão da vida no esforço para a tornar sem mácula, ou pelo menos, mais pura, na prevenção de um lugar na eternidade. Continuou Torga: “Mas canta dia e noite, a correr encostado às fundações do velho cenóbio beneditino, um ribeiro lustral”. Esta persistência do ribeiro apesar das ruínas que foram crescendo em torno de si, este cantar eterno, como um galope de alegria pela vida. Como escreve o poeta, «dia e noite». De seguida, certamente arrastado pela contemplação extrema que o lugar oferece, o poeta fala de si integrando-se no conjunto, fazendo também ele parte viva de algo que se reconstrói na memória do presente mas já não existe: “E o asceta e o poeta que se digladiam em mim, de há muito peregrinos desta solidão, mais uma vez se conciliam no mesmo impulso purificador, “. É verdade, a permanência naquele estreito de terra entre dois pedaços da montanha arrastam-nos para essa sensação de purificação da alma, de um bem-estar que só pode ser alcançado num território onde o ermamento nos permita esse diálogo com o mais profundo dos nossos sentimentos. E continua ainda: “a invejar os monges felizes que aqui humildemente penitenciaram o corpo rebelde e pacificaram a alma atormentada”. Que acrescentar à beleza desta descrição de um passado, de um tempo que ali nos é possível reconstruir e deixar que a imaginação viaje? Penitenciar o corpo e pacificar a alma era certamente o que se alcançava entre o verde e o azul, entre olhar para o chão ou olhar para o espaço e mais que olhar, sentir a terra e ver o céu. Miguel Torga termina este seu pequeno texto inserido na pág. 62 do Diário XIV com palavras que explicam o que acaba de nos dizer: “O corpo a magoar-se contrito no cilício quotidiano da realidade e a alma a ouvir de antemão, enlevada, a música da eternidade”. Este é o momento em que nos rendemos à extraordinária beleza da descrição do poeta que nos deixa num voo, leve e voluptuoso por entre a penedia da cascata que adiante se lança em voo largo sobre o carvalhal que abaixo a aguarda.

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