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01/11/08

AS FORMAS DE DEUS

Alcino Silva
Santa Sofia (Istambul)


O nosso olhar pode muitas vezes perder-se no pormenor, pode até imiscuir-se neste e naquele aspecto minúsculo do que é grande, magnífico e soberbo, mas na verdade, onde nos perdemos em definitivo é no aspecto altivo e grandioso das construções, sobretudo das que se destacam por uma arquitectura e estética que deslumbra.
Quando viajamos pela Europa, sempre nos detemos perante as catedrais que desafiam o homem, sobretudo aquelas que foram desenhadas, concebidas e construídas nesse momento medieval em que uma burguesia que já ameaçava ser opulenta, fazia uma afirmação da sua riqueza e a Igreja, fazia questão de não abdicar do sagrado, desse espaço onde governava e mandava há séculos.
Quantas vezes, paralisa-nos o espanto da grandeza da obra e da beleza das pedras, do brilho dos seus vitrais, da delicadeza das suas colunas ou como os seus pináculos se erguem para o céu.
Contudo, a sua construção nunca aconteceu ao ocaso. Desde o espaço onde foram concebidas, a forma como foram erguidas, a escolha da pedra que lhes deu talhe, a concepção dos seus arcos ogivais, os seus vidros coloridos, todos os aspectos cumpriam uma missão e visavam um fim. Não era apenas a convivência com Deus, era também a maneira como se desejava recebê-lo, como se pretendia que visse os crentes, os olhasse, os protegesse e os abençoasse. Os seus vitrais abriam as paredes desses extraordinários templos para a luz e as abóbadas desembrulhavam-se em autênticos desafios à gravidade, formando amplos espaços onde parecia ser possível acolher todos os fiéis. Deus, era assim visto da terra e, podia ver, olhando do céu, tudo ao mesmo tempo. Estas catedrais de arquitectura deslumbrante, não era um mero lugar para orar, pretendia-se que fossem também um território de convivência com o ser superior interiorizado na figura de Deus.
Na descrição da cúpula da catedral de Santa Sofia, ficamos a saber que os crentes, “em vez de olhar para a abside, [ao entrarem têm] a vista imediatamente atraída pela cúpula, imagem da esfera celeste. A sensação mistura o esmagamento que decorre da finitude humana e a elevação progressiva do olhar e da alma para o Reino de Deus. Além disso, a iluminação vem do alto: das 40 janelas que rasgam a base da cúpula e das janelas abertas nos muros altos dos arcos formeiros que sustentam o quadrado da cúpula a norte e a sul. Vinda do cimo, a claridade é ao mesmo tempo um símbolo da luz celeste e um convite a olhar para o Céu” (1).
Nestes monumentos religiosos que tanta atenção nos cativam, quer os encontremos no sul ou no norte do continente, nada ficava ao acaso e tudo ocupava um lugar e uma função, tendo como centro das atenções o que podia ser a presença figurativa de Deus, pelo que se adivinha ao entrarmos, um jogo que nos é proporcionado entre o real e o fantástico.
Henri Focillon fala-nos desta forma da Arte do Ocidente na época medieval: “O arquitecto intérprete do peso é igualmente intérprete da luz pela maneira como calcula e combina os efeitos. Não devemos restringir esta questão aos problemas da iluminação: têm uma importância capital e vê-los-emos ligados aos problemas da estrutura e do equilíbrio e, durante todo o curso da Idade Média, evoluírem as suas soluções de acordo com as soluções construtivas. Mas o estudo dos efeitos não se limita a isto. Diz respeito à relação dos vazios e dos cheios, das sombras e dos claros, e talvez sobretudo do nu e da decoração. Finalmente, a arquitectura não é desenho ou fotografia: é realizada na matéria. Sente-se imediatamente quanto a importância e a particularidade desta noção se repercutem em todos os tratamentos. Interessa a estrutura duma maneira fundamental, porque as diversas espécies de materiais comportam a sua lei íntima e as suas exigências, que se impõem às funções, ao aparelho e que restringem ou permitem a extensão dos programas. Além disso, a matéria é epiderme e cor e, por aí, contribui com sedução, com força, para a vida duma arte que não é apenas concebida para a análise técnica e para a anatomia, mas para o contentamento da vista. Actua nas relações que acabamos de evocar e que, ora dando a predominância aos cheios, às vastas superfícies luminosas, à economia arquitectural da decoração, ora assegurando-a aos vazios, ao equívoco do claro-escuro, à profusão das partes esculpidas, cria, com o mesmo vocabulário, formas, sintaxes, línguas e poéticas diferentes” (2).
Nas nossas viagens, olhemos um pouco mais para a profundidade das construções que se expõem aos nossos olhos, tentemos interrogar as pedras que se acastelam, as figuras coloridas que nos vidros adquirem formas de vida, sigamos os raios de luz que penetram pelas aberturas e vejamos até onde nos conduzem e que nos dizem, que palavras, que gestos, que símbolos, contêm. Há uma linguagem, ora mágica, imaginativa além, por vezes no domínio do fantástico e da ficção, simbologia sagrada no âmbito da mensagem, debruçada sobre a paisagem em desafio ao profano, mas com a beleza desses momentos que somados os espaços da história, constituem a cultura do todo.

(1) Ducellier, Alan, Kaplan, Michel, Martin, Bernardette, in “A Idade Média no Oriente-Bizâncio e o Islão”, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1999.
(2) Focillon, Henri, in “Arte do Ocidente-a idade média românica e gótica”, editorial Estampa, Lisboa, 1993.

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