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01/07/09

AINDA O BAIRRO DAS AMAZONAS

Mário Martins
Real capella de Nossa Senhora da Lapa (Porto)-Litografia, S., 1868


Como não me apetece escrever sobre nenhum tema da actualidade recorro às imagens da infância, aí pela segunda metade dos idos de cinquenta, naquele bairro com nome hípico, sei lá porquê, que eu gosto de cavalos gosto, mas naquele tempo a equitação era, de facto, reservada a uma elite, nós era mais o jogo da “casquinha porta a porta”, imagino que só os da minha geração e os mais velhos saberão o que isso era, uma simples casca de laranja a saltar numa mão e a outra mão a rematá-la à baliza que era uma porta de casa, se bem me lembro as duas portas tanto podiam estar de frente uma para a outra como no mesmo lado, bom, havia a variante mais sofisticada de se fazer uma bola amarfanhando papel de jornal numa meia velha de nylon de senhora, de vez em quando lá aparecia alguém com uma bola a sério que íamos jogar para a “pedreira”, a larga rua do bairro de terra e pedras onde se desenhavam os círculos para se jogar ao pião, faniqueira atrás e aí vai ele a rodopiar ora no chão ora a fazer cócegas na palma da mão, a que se seguiam as quecas da regra com que se nicavam os piões dos que perdiam, numa linguagem de aparência brejeira mas realmente inocente, ou então íamos dar uma volta de bicicleta a armar, um guiador feito de arame e as pernas a servir de rodas, já que o aluguer de uma ou meia hora, já não me lembro bem, de uma bicicleta a valer na Rua do Paraíso, que na altura era usualmente chamada pelo antigo nome dos Ferreiros, tal como a Praça da República era o Campo (da Regeneração) e a Rua dos Mártires da Liberdade era da Sovela e mesmo a Rua Antero de Quental era algumas vezes tratada por Rainha, dizia eu que o aluguer de uma bicicleta custava, salvo erro, 10 tostões que, somados, representavam 1 escudo ou duas broínhas de mel na Confeitaria Carioca, tudo à vista da mui altaneira e burguesa Igreja da Lapa, onde a missa dominical do meio dia era um acontecimento social muito concorrido, foi lá, nos seus frios e austeros corredores que fiz a catequese e aprendi os ritos da comunhão e onde, às vezes, era convidado a descalçar-me para a venerável catequista examinar se os pés cheiravam a “chulé” e se as unhas estavam convenientemente lavadas e aparadas, ou então guiávamos o arco com a gancheta, feitos de arame já se vê, o arame tinha muita saída nessa época, outras vezes jogávamos “à sameira” ou “à sameirinha”, não sabíamos sequer o que eram caricas, com casca para lhes dar peso ou sem casca, e era vê-las a correrem pelas guias dos passeios fora empurradas pelo polegar ou por um piparote do dedo médio, era preciso ter algum cuidado nos passeios a descer porque sempre podia vir, mais ou menos desgovernado, um tosco “carrinho de rolamentos”, feito de três ou quatro tábuas cruzadas e quatro rolamentos usados que um qualquer Fangio se esforçava, em cima dele, por guiar com uma simples corda, ou líamos os condores das coboiadas antes de passarmos, perigosamente, à acção, brincando aos índios e aos cobois com arcos e flechas feitos de varas de guarda-chuvas e do rijo fio do Norte (não nos ocorria perguntarmos se havia fio do Sul…), nesta festiva quadra dos santos populares irrompia pela rua o cheiro da degola dos inocentes, refiro-me aos anhos que eram sacrificados às dúzias na quinta ao lado para no dia de S. João pela manhã ver a minha e outras Mães a levarem, pelo seu pé, trucla trucla trucla Rua de Salgueiros acima, ao forno da Padaria do Campo as assadeiras de barro com as batatinhas dispostas em torno da carne sacrificada, cobertas com um pano, não me lembro agora se também iam as caçarolas com o arroz, para duas ou três horas mais tarde as trazerem de volta, quentes, de novo pelo seu pé, directamente para as mesas dos chefes de família, com a figura do santo na mão meu senhor dê-me um tostãozinho para o Santo António, meu senhor dê-me um tostãozinho para o S. João, meu senhor dê-me um tostãozinho para o S. Pedro, oh! dê-me, meu senhor…e não descolávamos facilmente, a verdade é que geralmente davam, com vento de feição e papel de jornal colado com farinha a uma tosca estrutura de meias canas, estrelas ou papagaios rasgavam garbosos os céus da inocência.


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