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01/11/09

OS CASTRADOS

António Mesquita

George Fluke, Harry Entwhistle, Albert Catflap and Freddy Lozenge in 1886 and 1898
http://www.dioceseofwenchoster.co.uk/choir.htm



O lançamento duma recolha de música escrita para os "castrati", organizada por Cecilia Bartoli, é a ocasião para trazer à nossa memória (e à nossa consciência) alguns factos históricos que só podem chocar a sensibilidade moderna.

A documentação que acompanha os 2 CDs é de primeira água e ajuda-nos a perceber, por um lado, que a voz de Bartoli, por magnífica que seja, é apenas uma aproximação da das vítimas do "coltellino" (a faca com que barbeiros e charlatães cortavam os testículos das crianças por módico preço) e, por outro, que esse sacrifício, de mais de quatro milhares de miúdos por ano, por toda a Itália, dos quais a maioria nem chegava a ser aproveitada pelos teatros de ópera e se via reduzida ao opróbrio e à vagabundagem, não podia deixar de estar presente no espírito dos aficionados de tão cruel "delicatezza", como um motivo que hoje chamaríamos de sádico e o luxo dos luxos, visto que ao amor desse canto se sacrificava o futuro.

A mutilação das crianças em tão grande escala era impossível sem a venalidade dos pais e sem o pretexto das mulheres não poderem cantar nos Estados Papais, conforme o interdito de S. Paulo, na Epístola aos Coríntios: "Que as mulheres guardem o silêncio nas igrejas: porque não lhes é permitido falar."

O Romantismo provocou uma mudança nos gostos do público que afastou os "castrati" dos teatros e, acrescenta Bartoli, "não menos porque a sua condição era cada vez mais considerada não natural e desumana."

Num tempo em que a escravatura florescia ainda nalguns países, que as mulheres não tinham direito de voto e o "pater familias" mantinha um poder incontestável, a tragédia dos "castrati" era apenas mais um sinal de desgraça. Mas vimos num filme recente ("Slumdog Millionaire", 2008-Dany Boyle) como há ainda quem fure os olhos das crianças para mendigarem de modo mais rentável para o "impresario". O amor da música não é melhor pretexto do que a miséria ou a voracidade.

Hoje, como ontem, são bem precários os benefícios da civilização e já nem sequer há tabus que os defendam dos que só recuam diante da superstição e do medo.


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