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01/01/10

UM PAÍS...

Alcino Silva
Gravura de José Dias Coelho



Parou por momentos na proximidade da porta. Sentiu o vento frio, gélido e aquela chuva devastadora que não dava sinais de alívio. Foram segundos, apenas para lhe permitirem ainda olhar para trás e despedir-se. Preparou-se, pois percebeu que aqueles quilómetros até casa a deixariam ensopada e a roupa não seria suficiente para lhe poupar o corpo. Certificou-se que o blusão estava bem apertado e aconchegou-se a ele. Com a mão esquerda ergueu o capuz e apertou-o em torno da cabeça e com a outra abriu o guarda-chuva que pressionou para baixo de forma a resistir ao vento. Os primeiros metros seriam os mais difíceis, nessa adaptação de temperaturas e de ambientes. De seguida a água que tombava desalmadamente principiou a molhá-la e foi-se habituando. Catarina caminhava agora, passeio fora e para que a provação e o esforço não se tornassem tão pesados e a distância mais longa, foi alimentando o pensamento com preocupações e sonhos. Estes faziam esquecer e amenizar as dificuldades e permitiam ganhar forças para o amanhã. Sempre os mesmos dias, a mesma máquina, a mesma tarefa e uma fadiga acumulada. Aqueles ritmos que a colocavam sempre num patamar limite, por tão pouco salário, por quase nada. No fim, os mesmos três quilómetros a percorrer aquelas subidas, íngremes e extensas. A casa nova, por terminar. Já habitável, mas com tanto ainda para acabar e a Inês, mais dois anos e a finalizar a escola e novos sonhos para o seu futuro, mas com que dinheiro, com que trabalho? Parece que a chuva aumentou e Catarina confunde-se com a noite, perde-se naquelas trevas, desenhando apenas sombras em cada candeeiro que passa. É apenas um vulto que engana o presente com esperanças futuras, nesse acreditar no que duvidamos alguma vez alcançar. Prossegue e procura estugar o passo, encolhendo-se sobre si e voltando a soltar o pensamento. Mais uma semana e os automatismos de sempre. Todos os dias as mesmas exigências, uma contínua pressão sobre a cadência de trabalho, uma constante incerteza sobre o emprego e aquele salário tão baixo, tão minúsculo que a meio do mês parece já não ter existido e mais uma vez a fazer adiar necessidades para o mês seguinte, como se isso pudesse aumentar os seus rendimentos. Como gostava que a casa se alindasse e que a Inês pudesse prosseguir na escola, descer até à grande cidade, soubesse lidar com as letras e alcançasse um emprego razoável, pelo menos, afastado de tanta necessidade, de tanta carência, de tanta falta de tudo. A subida parece hoje mais longa, mais íngreme, mais penosa e a chuva pesa-lhe agora demasiado açoitada por esse frio que faz tremer os olhos.

O automóvel aproximou-se, dos melhores modelos, 180 cavalos, sólido, poderoso. Ao volante, o Fernando nos seus vinte e poucos anos despreocupados, sem necessidades, sem precisar de esperança, nem de futuro, pois o presente apresenta-se-lhe farto e folgado.

Nunca saberemos o que se passou naquele espaço negro quase sem luz. O corpo de Catarina, voou como os seus sonhos, soltou-se no ar, entre a chuva e o vento, sem um gesto, talvez com o olhar aberto pela surpresa e caiu lento, como se o segurassem, com a cabeça tombando sobre a guia do passeio, como uma almofada para seu descanso. Os olhos de Catarina adormeceram dias depois com todos os sonhos que guardavam.

É manhã na aldeia onde viveu Catarina. A chuva deixou em paz por uns dias os corpos cansados. O sol, frágil serpenteia por entre as casas e o verde dos campos, mas a luz que dá vida à natureza é insuficiente para afastar o frio soprado por uma brisa que arrepia os sentidos. Se a procurarmos ainda pequena, encontraremos Catarina a crescer num país que semeou ilusões entre os injustiçados, os despossuídos, esse povo picolo de que falam os italianos. Rasgou-lhes avenidas nos olhos, construiu nos pensamentos castelos de lápis-lazúli e coral como os do poeta, mas na hora de deixar a aldeia onde um dia longínquo estendeu as mãos como uma ave, Catarina levava a alma tão vazia como quando nasceu, talvez sem ódio, talvez sem rancor, talvez até sem a irritação dos rebeldes, talvez apenas com a revolta contida por ter nascido sem nada e ter deixado para sempre a sua aldeia, com menos ainda do que quando chegou e unindo esses dois espaços de tempo, somente trabalho, muito trabalho para quase nada.

Ao longe, o som dolente do sino esvoaça em direcção às colinas que protegem o vale. É provável que os sonhos prossigam a traçar desenhos no pensamento dos homens e das mulheres que todas as madrugadas teimam na tentativa de mais um dia de trabalho, é possível que a Inês consiga alcançar algo que a mãe já não teve tempo de lhe oferecer. É possível, pois na pátria de ambas muitas coisas têm sido possíveis quando os que vivem em silêncio se rebelam, mas por ora, nesta aldeia nortenha voam apenas, com o som que se solta das campânulas as palavras de outrora em poema sempre vivo:

Chamava-se Catarina

o Alentejo a viu nascer

serranas viram-na em vida

Baleizão a viu morrer.




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