StatCounter

View My Stats

01/02/11

HÁ MUITO QUE NÃO SONHAVA

Alcino Silva
http://darigaaz.over-blog.com/article-22149334.html



Há muito que não sonhava, verdade seja dita, já não se recordava do último sonho. Uma vez ou outra, talvez por cansaço, pesadelos, estremecer de medos, acordavam-no pela madrugada. Mas, sonhos mesmo, não tinha. Não sonhos da vida, mas antes sonhos da noite, esses sonhos de sonhar, esses que a imaginação guarda e a memória só mostra quando os olhos se fecham para a realidade. Quantas vezes, o impossível usufruído pelos instantes de um sono que se aligeira. Sem motivo aparente, naquela noite sonhou. Reconstrói com dificuldade cada momento, mas lembra-se de ter acordado num país longínquo como nos contos de fadas que povoavam a ingenuidade da infância. A meio de um dia luminoso apareceu algures no território da República da Ficciolândia. Era um país pequeno, dividido entre médias montanhas, planícies longas, sol amistoso e mar, muito mar, azul e cheio a estender-se por longas e muitas milhas. Os seus habitantes dividiam-se em três grupos sociais distintos, os obscenos, os acomodados e os pasmados. Estes últimos, maioritários, por seu lado, constituíam outros subgrupos, os palermas, os espertos e outros que apareciam como, sonhadores, românticos, idealistas e derrotados. Os espertos estavam por todo o lado e, em certa medida, garantiam o silêncio cúmplice dos acomodados, numa mistura de orar a Deus e prostrarem-se perante o Diabo, sem sair de casa. Os obscenos eram a casta, usavam gravata, vestiam melhor, comiam à farta e, mandavam, protegidos por uma guarda pretoriana e pelo conformismo dos acomodados. Naquele minuto da história em que apareceu na Ficciolândia, uma fractura social interrompia decénios de obscenidades. Os sonhadores e os românticos movimentavam-se em direcção à capital. Na sua esteira, os espertos pensavam já por qual porta haveriam de entrar. Os acomodados, gritavam dos seus sofás que era necessário ter cuidado, pois entre a incerteza e o conhecido, este sempre tinha alguma garantia. Contudo, o tempo não era de espera e aquele grupo suportado por uma poderosa unidade blindada, rumava de norte para sul. Assim, se foram passando os dias em progressos militares constantes. Pelo caminho, em aldeias e cidades, deixavam alegria, espalhavam futuro, carregavam solidariedades, instalavam plateias de saber e o convívio humano parecia o trabalho que mais riqueza produzia. Os seus carros de combate, possuíam largas lagartas, para enfrentar as lamas outonais e o estrume em que os obscenos haviam transformado a república, constituídas por placas de imprimir, que deixavam gravados no alcatrão das estradas, páginas e páginas de livros dos melhores autores da pátria. À noite, aqueles carros de guerra, disparavam salvas de foguetes sobre o inimigo. Era um fogo que iluminava a escuridão das obscenidades, lembrando as palavras de Neruda “e soltarei em delírio a minha revoada de flechas” e ao explodir, não matava, apenas espalhava palavras de esperança. No mar, formava-se uma armada espectacular. Os mais belos navios, com tripulações marinheiras de poetas, disparavam também sobre terra. Dos grossos canhões dos cruzadores, saíam estrofes de poesia que castigavam as posições militares dos obscenos.
Foi correndo o tempo e quando a coluna militar daqueles sonhadores se aproximou da capital, e as obscenidades que profanavam o país, na iminência da derrota, arrumavam os baús das maldades, das iniquidades e das patifarias, surgiu o grupo dos acomodados, senhores que se davam ao respeito, bem posicionados na vida, conhecedores profundos do Estado obsceno, sempre disponíveis para compreender o regime, servindo-se do exército de espertos do grupo dos pasmados, pediam uma suspensão das hostilidades para negociar uma saída que não prejudicasse ninguém e evitasse situações irremediáveis que não beneficiariam a justa causa que até ali os levara. Não disseram que quando falaram em causa, estavam apenas a pensar na sua.

Naquela manhã de sol ameno aquela fantástica fileira de carros aguardava na berma da estrada o desfecho da missão dos acomodados. Chegaram por fim, com ar grave e austero, dizendo que havia acordo e novo governo. Traziam uns esqueletos já antigos e usados, vestidos com nova roupagem, mexendo os dedos e acenando com a cabeça. Eram os novos senhores. Todos podiam regressar aos seus lares que o futuro principiava agora, disseram então. O sonho terminou abruptamente quando no mar os navios de poetas viravam a proa e em terra os carros de combate voltavam a norte. 

Acordou estremunhado e levantou-se como todos os dias para uma nova jornada do seu trabalho. Era o início da semana e ao ligar o rádio soube que no dia anterior um palerma qualquer fora eleito presidente da república. 


Sem comentários:

View My Stats