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01/08/11

MANDARINS

 Alcino Silva


Recordo o ano de 2008, nessa lembrança que nos deixou pasmados, pese embora todos sabermos que o barco haveria de terminar na areia. Os tartufos que governavam os bancos e as seguradoras por esse mundo inteiro, após se aboletarem aos prémios que a si próprios atribuíam, foram bater à porta dos Estados com a ameaça de que, ou ficam com as nossas dívidas ou estas arrastarão de qualquer forma o vosso dinheiro.

Conhece-se a decisão dos poderes espalhados pelos continentes, soçobraram, vergonhosamente, aceitaram o espúrio reclamado. Desde então, vêm esbulhando todos aqueles que trabalham e em decisões ignominiosas, poucas vezes ocorridas na história, repetem os planos, PEC I, II, III, IV em versão alargada e todos os outros que se perfilam no horizonte sombrio dessas desalmadas cabeças. Em cada um deles, abrem o bolso dos contribuintes que vivem do rendimento do trabalho e trazem a mão cheia de quanto dinheiro apanham. Aparentemente o país aproxima-se do caótico estado do saque. Nas ruas rebentam à bomba com as caixas multibanco, no Ministério das Finanças apoderam-se do dinheiro ganho legítima e legalmente por quem trabalha. Os primeiros, são criminosos, os segundos, patriotas.

Portugal viveu recentemente um processo eleitoral integrado no seu sistema de democracia. Perfilaram-se imensos candidatos, grande parte deles, empregados dos mandantes do sector económico e financeiro que é dono do país. Disseram ao que vinham, uns com ar de cordeiro, outros com gesto de trovão, prometeram levar ainda mais longe o que os empregados do sector financeiro internacional haviam estado a exigir ao longo de três semanas. Votaram todos os que o desejaram, os que trabalham e os outros. Sobretudo, os outros, escolheram, que os que trabalham devem pagar as dívidas, não as suas que não as terão, mas as que os homúnculos espalharam pela sociedade em proveito próprio e dos amos a quem obedecem. “Recorde-se que, com base na Segunda Lei, existe uma fracção ε de votantes que são estúpidos e as eleições oferecem-lhes uma magnífica ocasião para prejudicar todos os outros sem obter qualquer ganho com as suas acções. Permitindo a realização desse objectivo, as eleições, contribuem para a manutenção do nível ε de estúpidos entre as pessoas que estão no poder.”(1)

Afinal, dias volvidos, a assembleia da república mostra-nos que o cordeiro é um rei, não um qualquer mas uma espécie de Átila, esse huno, só que este em vez de flagelar Deus, vergasta os crentes e promete não baixar a chibata enquanto as tulhas não se encherem de novo.

Os cordeiros mansos que se vêem no hemiciclo para onde falou, prometem aprovar a pilhagem de 800 milhões de euros ao 14º mês dos trabalhadores, ou seja, esses empregados com contrato a 4 anos preparam-se para legalizar um autêntico processo de gamanço aos rendimentos de quem trabalhou e produziu riqueza. Colocam-se em bicos de pés como se fossem mandarins, não esses ordinários da antiga China, mas antes as figuras de Marvels comics para nos dizerem que a nossa vida não tem alternativa a não ser pagarmos a dívida dos seus protectores. Com este dinheiro embolsado vão pagar a redução da TSU, pelo que, como bem escrevia o cronista Manual António Pina, os 800 milhões que vão sair da conta dos trabalhadores vão directos para a conta dos patrões. “Despotismo dos governantes, opressão dos privilegiados, opressão dos sacerdotes, sois os assassinos da liberdade do homem, da liberdade de pensamento, da liberdade da consciência”.(2)

E as suas promessas não terão limite, os trabalhadores passarão a pagar os seus despedimentos, os contratos a termo estendem-se como se caminhassem num tapete sem fim, os desempregados passam a trabalhar de graça para as misericórdias, os salários quedam-se no valor de há dois ou três anos como na actividade seguradora e, se possível, reduzem-se, vende-se ao desbarato o património estatal, ou seja da comunidade colectiva, aos mesmos a quem pagamos a dívida. As hostes do godo Alarico chegaram para saquear Roma. Venderão o Mosteiro dos Jerónimos, a Torre dos Clérigos, quiçá, o Panteão, na expectativa de que as cinzas das glórias pátrias ainda possam gerar retorno para os accionistas, esses mandadores sem lei. Alardeiam a vontade de transformar o Código do Trabalho, passando-o de uma cartilha de maldades para uma metáfora de direitos.

Não contentes com a diminuição ilimitada e sem freio do valor do trabalho, vão querer, tal como a A.P.S. já pretende, que o horário de trabalho passe a ter apenas uma regra, começa e acaba quando a entidade patronal, os interesses da empresa, dizem eles, determinar. Certamente passaremos a trabalhar ao toque dos sinos dos mosteiros medievais que nos acordavam às matinas e nos libertavam pelas vésperas, usando uma sineta de toque silencioso para nos avisar dos descansos.

Estes senhores que nos acorrentam que nos violam o quotidiano, sem pudor, sem moral, sem princípios, acreditam-se janízaros ao serviço da Sublime Porta mas não passam de governantes de um harém de obscenidades, comportando-se como mordomos de um banquete de fidalgos, onde apesar de principescamente pagos, só reinam na cozinha. “Ministros da inveja, servidores da ignorância, querem submeter-nos a uma vil e estúpida hipocrisia…”(2)

Obrigam-nos a viver um tempo de escolhas, como escreveu Baptista Bastos, «podemos fugir mas não nos podemos esconder», e nessas escolhas temos de optar entre o silêncio da opressão ou a irreverência do legítimo protesto. Não venho aqui apontar caminhos, mas não deixarei de escolher o meu face à vaga avassaladora de bárbaras desumanidades que se avizinham e sinto essas palavras antigas a acudir-me à memória, “se eu tivesse um chicote / chicote de fios de aço / eu não sei o que faria / mas não faria o que faço.”
[estas palavras foram escritas no início do mês de Julho. Após isso, o coelho começou a distribuir o país pelos amigos e pelos patrões que lhe pagaram a campanha eleitoral. Do que restar fará uma sociedade de misericórdias e indigentes. O poder económico e financeiro recuperou as posições anteriores à revolução, mas mais engordado e mais intolerante do que o fascismo lhe permitiu. Tudo isto vai acontecendo com o silêncio cúmplice dos homens da igreja, também eles, amigos e patrões do coelho. E também com o silêncio ensurdecedor de todos nós, democraticamente, muito democraticamente satisfeitos o que me faz lembrar que estará chegado o momento de lembrar a exortação de Jean Paul Sartre a Paul Nizan, «Não tenha vergonha de querer a Lua: precisamos dela».]

(1) “allegro ma non troppo”, Carlo M. Cipolla, Celta Editora, 1993;
(2) “O Homem de Fogo”, Francesca Y. Caroutch, Ésquilo edições, 2004


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