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01/01/12

MUROS RELIGIOSOS (7) O Hinduísmo


Mário Martins

 Brahma, uma das principais divindades do hinduísmo (Wikipédia)


“Aquilo a que se chama o hinduísmo (palavra criada pelos Ingleses por volta de 1830) não corresponde a um domínio separado da vida social, como nos nossos dias acontece com a religião no Ocidente. O hinduísmo é essencialmente e indissoluvelmente um sistema sócio-religioso (…) Colocar a um hindu a questão: ‘Qual é a sua religião?’ equivale portanto a perguntar-lhe: ‘Qual é o seu way of life (maneira de viver)?’ (…).”
                  
Lakshmi Kapani

“Os melhores deuses são hindus”.

                                               O. Herrenschmidt


Se no texto anterior saímos da civilização judaico-cristã para entrarmos no mundo islâmico, com o presente texto iniciamos a abordagem das grandes religiões orientais, não sem grande receio de errar, quanto mais não seja na escolha das citações, tais são as diferenças (talvez impenetráveis para quem não as vive) com as três religiões do Livro (Judaísmo, Cristianismo e Islão). Desde logo o Hinduísmo, segundo a Wikipédia “citado frequentemente como a religião mais antiga”, que marca, indelevelmente, a Mãe Índia.

O Hinduísmo - uma religião sem fundador humano - é uma religião complexa, perante a qual a divisão do divino pela trindade cristã parece simples.

Consoante o olhar que lhe lançarmos, a Índia religiosa poderá surgir como politeísta, como panteísta, ou até como monoteísta.

Politeísta, sem dúvida, dada a abundante diversidade dos cultos prestados a inúmeros deuses e deusas (…) Politeísta, igualmente, é a propensão da religiosidade popular para povoar as árvores, as fontes, as encruzilhadas, as casas, etc., de todas as espécies de “seres” invisíveis, ora protectores ora maléficos, e que convém tornar propícios com invocações e oferendas (…).

A noção de panteísmo parece ambígua, se a referirmos à realidade concreta do hinduísmo. Está sem dúvida presente na generalidade dos fieis, mas mais sob a forma de um sentimento, quase de uma sensação, que de um conceito (…) Não se estabelece uma fronteira rígida entre o visível e o invisível, entre o animado e o inanimado, entre o homem e o animal (ou o vegetal) e entre as próprias consciência humanas, como se obscuramente se apreendesse que um só e mesmo impulso vital anima todas as coisas e as torna participantes do divino (…) Em contrapartida, o hinduísmo filosófico sempre teve uma consciência clara do carácter apenas aparente dessa fragmentação do absoluto através dos seres. Sempre soube que tal difusão universal, se fosse algo de real, destruiria a unidade do divino e comprometeria a sua transcendência (…) O “brahman”, o Uno imparticipável, exclui em absoluto o mundo e as consciências finitas. Aquilo a que se chama panteísmo é aqui verdadeiramente um acosmismo.

O “monoteísmo hindu” reveste-se igualmente de aspectos muito especiais. Com efeito tudo se passa como se o hindu pudesse virar-se sucessivamente, e com toda a sua alma, para diversos deuses, “esquecendo” provisoriamente os outros. Este “monoteísmo alternativo” (…) é absolutamente característico da mentalidade hindu (…) A noção de um Deus ciumento, exclusivo e vingativo é tudo o que há de mais alheio ao hinduísmo (…) Poderíamos notar aqui, recorrendo à terminologia do Islão, que o que distingue um deus hindu é admitir sempre, ainda quando assume o papel de Supremo Senhor, a presença ao seu lado de diversos “associados”. Na perspectiva islâmica, pelo contrário, Alá não pode tolerar tais associados porque a sua simples existência constituiria um insulto à sua transcendência (…).

No plano filosófico-teológico convém (…) estabelecer uma clivagem e uma complementaridade entre, por um lado, o absoluto (o “brahman”) para além de toda a determinação, apenas abordável de modo apofático (negativo) no silencio da meditação, e, por outro, aquilo a que se chama o Senhor Supremo, correntemente representado como criador do universo e preservador da sua ordem imanente (…).

A noção de dharma é essencial no hinduísmo, o qual é “frequentemente chamado de Sanātana Dharma”, que significa em sânscrito, “a eterna lei” (Wikipédia).

O dharma é o conjunto das relações inteligíveis, das “leis” subjacentes ao universo e que o impedem de se desmoronar no caos. A este nível, apresenta-se como uma ordem cósmica que ao mesmo tempo engloba e ultrapassa a realidade humana. Ao nível propriamente humano, consiste no conjunto das instituições, dos modos de vida, dos ritos e dos comportamentos individuais “justos”, no sentido de que são geradores de paz, de estabilidade, de concórdia, de prosperidade, e permitem assim à generalidade das pessoas atingir, em toda a medida do possível, certos bens como o bem-estar material, as satisfações dos sentidos, a saúde, a longa duração da vida, a continuidade das linhagens familiares (…) Ao mesmo tempo, é evidente que os homens não cumprem o seu dharma - apesar de este ser a lei profunda do seu ser - com a mesma espontaneidade infalível dos seres da natureza, por exemplo, os astros, ou os animais. Concretamente, por conseguinte, o dharma conterá sempre uma dimensão de violência coerciva destinada a disciplinar o homem, alinhando o seu comportamento pelo dos seres da natureza. Em termos bergsonianos, o reinado do dharma irá inevitavelmente traduzir-se numa forma de religião “fechada”, em última instância totalitária.

É contra tal encerramento que os renunciantes protestarão constantemente em nome da exigência de liberdade absoluta presente no coração do homem. A personagem do renunciante hindu é em princípio fácil de definir: ele é aquele que, com vista à “salvação”, renuncia aos bens deste mundo, isto é, aos prazeres, às riquezas, ao poder, á fama, etc. (…) A sociedade de castas é um mundo em que cada um está no seu lugar, que explica tudo e tudo justifica, intelectual e moralmente, a começar pelas desigualdades sociais (…) Virando-se para o homem adaptado a essa sociedade de castas, o renunciante considera que ele vive uma existência repetitiva, vivendo por viver sem procurar fazer alguma coisa da sua vida (…) Por isso é que tende logo a atirar-se para os extremos, em busca de uma liberdade metafísica absoluta, que pouco liga a um “livre-arbítro” moral, e ainda menos a uma liberdade política à ocidental (…) O valor fundamental dos renunciantes, o que lhes serve de “moral” no sentido de que rege globalmente as suas relações com o mundo e com os outros, chama-se não-violência (…).

O hinduísmo não é uma “religião do Livro”, baseia-se em vários corpus de textos, que todos se consideram emanados, de uma maneira ou de outra, do absoluto divino que se comunica livremente ao homem.

(…) Deve conceder-se um lugar especial à Bhagavad-Gitâ, ou “Canto dos Bem-Aventurados” (…) (que) constitui na prática um dos textos-chave do hinduísmo (…) Transcendendo as distinções de casta, propõe a todo o hindu, desde o rei ao varredor das ruas, a possibilidade de se tornar um “asceta no mundo”, de participar (…) na obra divina e de merecer em troca a descida da graça (…) A Gitâ é o Evangelho dos hindus.

Os mais altos valores reconhecidos pelo hinduísmo estão efectivamente ligados à atitude ascética e à superação da condição humana que ela pretende alcançar (…).

Concluamos pela não pertinência na matéria das nossas próprias categorias teológicas. A Índia não é propriamente panteísta, nem monoteísta, nem politeísta (…). Nestas condições, quem quer que procure pôr alguma ordem no pulular anárquico das representações e práticas hinduístas tem de adoptar um ponto de vista estrutural, isto é, que tentar ver como é que aqueles diversos aspectos são complementares uns dos outros e formam um sistema (…).


Todas as citações (em itálico) são da obra “As grandes religiões do mundo”, Michel Hulin e Lakshmi Kapani, Direcção de Jean Delumeau, 1993, Editorial Presença, 2002.



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