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01/01/12

O PASSADO NA MEMÓRIA DO TEMPO


Alcino Silva

Aljubarrota (Azulejos do Parque Eduardo VII)

Aqui estou, neste recanto do presente lembrando essa grande praça do passado, onde contigo assisti à passagem da história e à construção de quimeras. Estou velho, nessa idade, em que tudo parece perder-se e, no entanto, não deixas que o tempo passe por ti e a formosura de então aparece agora tão viva, apenas com uma diferença, estás mais bela ainda. Dizias-me há um certo tempo que os olhos cansados não me deixavam perceber que estavas mais velha e não compreendias como podia dizer que estavas mais bonita. Mais velha, estás, sem dúvida, pois os anos na sua contagem também te levam a ti, mas são apenas os anos, a beleza essa, a cada dia fica mais enriquecida, mais os teus traços derrubam o meu olhar e se me afasto para resistir ao teu feitiço, à tua chegada, quando os olhos sorriem, extensões imensas da muralha que ergui, caem derrubadas como as cartas de um jogo e de novo fico preso a esse encanto extraordinário dessa perfeição que vive no teu rosto. Talvez a revolução já fosse para mim apenas memória, mas quando surges, Mariana, tudo se incendeia de novo.
Os anos passam e nada se apaga desta memória que vai olhando o tempo desfiar por este Tejo cujas margens me acolhem. Nas noites mais longas sinto aquela brisa que subia do rio e parecia empurrar as gaivotas para terra, não as deixando navegar por sobre as naus que paradas frente à Ribeira pareciam aguardar o que todos pressentiam. Tudo pareceu acontecer num instante, naquela soberba manhã do dia 6 de Dezembro, quando o galope de Álvaro Pais alvoroçou a gente miúda, enchendo de gritos a maralha que tresmalhada se dirigia calçada acima para os Paços da rainha, clamando pelo Mestre. Foi nesse tropel da arraia que te encontrei nessa vez primeira. Estavas imobilizada a um canto, entre a parede de uma casa desses homens honrados que agora nos lançavam encosta além ao assalto desse mundo real, desejosos de mudança e de afirmação dos seus cabedais. Um sorriso nascia em ti, um pouco entre o receio e a inquietude do que vias, e ao descobrir-te tive a certeza que a revolta levaria longe o anseio da cidade. Na profundidade dos teus olhos, a luz intensa de uma estrela, brilhava como se fosse um sol aberto nessas Primaveras que todos os anos chegam enchendo de vida o casario. Dias volvidos, nessa agitação que a rebeldia gerou, e quando a noite parecia desenhar sombras no corpo e no pensamento dos homens, apareceste de novo, em S. Domingos, quando os homens honrados dessa burguesia vilã pareciam contentar-se com a morte do valido da aleivosa e homens dos mesteres lhes saíram ao caminho. Estavas ao meu lado, no instante em que destemido, o tanoeiro Afonso Anes Penedo agarra a espada com a força das suas mãos e exige que se aprofunde o que se começou. Até as chamas das tochas ardentes estremeceram perante a sua coragem e a sua determinação. Senti a tua mão, apertar-me o braço como se o meu apoio te pudesse proteger. Essa mão que escorregando se aconchegou entre os meus dedos, enquanto os nossos olhares viajavam, procurando-se. A cidade viveu dias de uma intensidade que nem as chamas do tempo futuro haveriam de apagar e contigo, percorri essas ruas enxameadas de esperança e de arrojo, a tudo resistindo, aos combates, à fome, ao cerco desses castelhanos de Castela que por terra e mar nos assediaram. Foi nessas noites de sítio que atravessamos o rio em direcção à outra margem onde homens bravios recusavam a rendição e se alçavam nessa resistência da qual se viria a forjar a pátria. Os remos baixavam lentos e silenciosos sobre as águas e só o incêndio, que saindo do teu olhar me devorava a alma, iluminava aquela fantástica noite sobre o Tejo. Como poderia eu olvidar esses dias e noites nos quais as madrugadas pareciam veleiros rumando para o desconhecido com essa fé que embala os homens na descoberta do novo a que chamamos futuro e com essa sedenta necessidade de justiça que a humanidade procura nos caminhos pedregosos da história. 

Os anos passaram e desses e doutros cansaços pareço descansar agora, sentado nestas margens, contando as naus que saem em busca do Atlântico. Da beleza dos ideais da revolução que a nobreza fez sucumbir entre as trevas da sua preguiçosa luxúria, resta apenas a lembrança, uma recordação ténue mas viva desse galope da vontade do povo miúdo gravando páginas de ouro no livro da história. Aljubarrota foi a nossa glória maior, o triunfo que nos alçou por muitos e longos anos. De quando em vez, apareces e quando surges tudo se movimenta na minha memória, como se ontem ainda fosse hoje e eu estivesse a correr pelas ruas rebeldes da cidade revoltada. Por momentos, regresso à Rua Nova, à Rua dos Mercadores, escuto ainda os gritos alegres e fortes do povo e por sobre as cabeças da multidão, como uma bandeira flutuando ao vento, o teu olhar enriquecendo a beleza da rebelião. Para todo o sempre.   




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