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01/02/12

MUROS RELIGIOSOS (8) O Budismo


Mário Martins

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Uma estátua de Buda feita por Sarnath no século IV (Wikipédia)
 
 
“(O budismo) afirma igualmente que existem diversas divindades, mas estas não são elementos essenciais da doutrina: o budismo não é pois um politeísmo. Além disso, ao contrário das religiões monoteístas, Deus ou o Criador supremo não tem nele qualquer lugar.”
 
Môhan Wijayaratna
 
 
(…) O budismo é a mais inapreensível das religiões universais. É quase impossível pronunciar a seu respeito uma generalidade conforme a todos os seus aspectos, e mais ainda definir o que é um budista (…).
 
(…) Não há escrituras universalmente reconhecidas a que o crente se deva reportar (…) Não há uma língua sagrada comum, uma autoridade religiosa geral, dogmas com definições claramente formuladas e obrigatórias, e as modalidades de implantação diferem consideravelmente de um país para outro. Só se começa a apreender uma certa unidade tomando consciência das divisões, para depois reencontrar a ligação subjacente.
 
Ao contrário do hinduísmo e do judaísmo, o budismo tem origem num fundador, Buda (…) Ao contrário do cristianismo e do islão, esse fundador não foi uma encarnação divina ou um mensageiro de Deus, mas um ser humano que expôs uma disciplina mental que já pusera em prática com êxito e uma verdade que compreendera ao desenvolver as suas capacidades interiores (…) Os budistas, portanto, não dirigem qualquer oração ao seu mestre desaparecido; apenas devem seguir-lhe os conselhos.
 
(…) Poucos budistas recusariam reconhecer na pessoa do Buda (expressão que significa Iluminado) Sâkyamuni o fundador da sua fé, o qual terá vivido nos séculos VI-V a. C. Nascido no sul do Nepal actual, sob uma auréola mitológica não muito diferente da natividade cristã: é miraculosamente que penetra no seio de sua mãe adormecida (…) e é do mesmo modo miraculoso que dela sai aquando do nascimento, não pelas vias naturais, mas pelo flanco (…), logo o seu destino é “traçado” pelas profecias que os adivinhos fazem a seu pai (um pequeno rei da segunda casta, a dos guerreiros) depois de terem examinado as marcas singulares que o corpo da criança apresenta e que revelam o grande homem: ou virá a ser imperador universal, soberano de todo o orbe do mundo, ou será buda. O rei deseja naturalmente que o filho perfaça o comportamento próprio da sua casta e insiste em conservá-lo à margem de uma carreira religiosa inconveniente para o seu meio; isola-o por conseguinte numa vida de prazer ao abrigo do sinistro espectáculo do mundo. O jovem cresce sem cuidados, apesar da morte precoce da mãe, casa-se e terá até um filho. Mas os deuses velam por que o seu destino religioso se cumpra: ao sair de um dos seus palácios acompanhado do cocheiro, tem sucessivamente os “quatro encontros” decisivos, primeiro com um velho abandonado pelos seus, depois com um doente, a seguir com um cortejo funerário e finalmente com um renunciante, um asceta que abandonou as prerrogativas da sua casta, o seu lugar no mundo, para partir à busca da libertação. O jovem compreende então onde está a sua vida e decide pôr-se a caminho (…) Depois de uma longa cavalgada, devolve o cavalo, corta a abundante cabeleira, enverga roupas grosseiras e vira-se para a busca da Iluminação (…) Durante esses anos encontra vários mestres, pratica e ultrapassa os seus diversos ensinamentos (…), rejeita-os sucessivamente e ele mesmo se torna uma espécie de mestre com prestígio suficiente para atrair a si cinco discípulos ou companheiros fieis (…), e decide entregar-se a uma ascese total, abstendo-se de qualquer alimento e suspendendo pelo ioga as suas funções vitais até aos confins da morte (…) Compreende então (…) que a ascese extrema não leva a coisa alguma, emerge da sua concentração e toma um pouco de alimento (…), atira ao rio a tigela onde tomou a sua primeira refeição e ela sobe a corrente para chegar até uma caverna onde toma o seu lugar ao lado das tigelas lançadas fora do mesmo modo pelos budas das idades precedentes. Assim o Iluminado (…) não é um indivíduo único, mas o actor de uma história que se repetirá indefinidamente enquanto subsistir um mundo para salvar; estamos muito longe do carácter de hápax (o que é dito uma única vez) das personalidades messiânicas e proféticas deste lado da Eurásia. O futuro Buda sabe agora o que tem a fazer; recuperadas as forças (…) centra a sua meditação na própria natureza da existência (…), atinge a realização da Iluminação perfeita e completa, adquirindo a recordação de todas as suas existências precedentes (…), adquire, sobretudo, a compreensão total do mecanismo das causas e condições que provocam a existência, com os meios que permitem pôr-lhe fim e atingir a libertação perfeita (…); ele sabe agora que já não renascerá. Poderia consagrar o resto dos seus dias a fruir dessa certeza solitariamente (…) mas um buda é não apenas um iluminado, mas também um iluminado que, pela sua pregação, ensina os outros a atingirem por sua vez a Iluminação. Por isso, o Buda irá consagrar-se à propagação do ensino que inicialmente hesitara em entregar aos homens (…).
 
No domínio do conhecimento, o Buda insistiu na importância das experiências pessoais e na compreensão assente nos factos empíricos. Na sua época (…) existiam efectivamente três espécies de mestres religiosos: os primeiros, como os brâmanes, eram os “revelacionistas” (…); pretendiam ter um conhecimento dos Veda (textos sagrados exalados pelo Absoluto). Os segundos eram metafísicos racionalistas; o seu ensino assentava em especulações. Por fim, outros mestres diziam que haviam atingido o seu conhecimento desenvolvendo as suas próprias capacidades interiores: era com essa categoria de mestres que o Buda se identificava.
 
Várias religiões contemporâneas do Buda assentavam em revelações acerca do mundo, sua origem, sua existência e seu fim. O Buda nunca se preocupou com essas questões e recusava-se a responder-lhes, acentuando a inutilidade de tais discussões em comparação com o objectivo da vida religiosa (…) Segundo ele, o indivíduo que insistia em pretender obter respostas a seu respeito estava a perder o seu tempo, tal como alguém que, ferido por uma seta envenenada, procurasse informações sobre a seta e sobre a pessoa que a atirou, sem deixar ninguém retirar a seta ou cuidar do ferimento.
 
Numa atitude surpreendentemente agnóstica e de “ver para crer”, o Buda perguntava aos mestres brâmanes que ensinavam várias vias para a união com Brahmã (Deus criador) se alguma vez viram esse Brahmã com que se queriam unir. Como a resposta era negativa, o Buda comparava a atitude dos mestres com a de um jovem que dissesse: “Estou apaixonado pela mais bela das jovens deste país, desejo-a, sem contudo saber quem é essa jovem, onde está ela, sem nunca a ter visto e sem saber a que família pertence”. E quando os mestres definiam Brahmã como Esplendor supremo “visto que não há outro esplendor superior a esse, nem esplendor mais excelente que esse”, o Buda dizia-lhes: “Ó amigos, podeis continuar assim longo tempo respondendo: visto que não outro esplendor superior a esse…, desde que me indiqueis qual é esse Esplendor supremo de que falais”.
 
(…) O ensino do Buda não é, pois, uma simples revelação da natureza das coisas, mas, antes de mais, um método (…) Essa prática, para ser verdadeiramente levada a bom termo, não se pode exercer no seio da vida mundana: tem necessidade de um enquadramento adequado que é o oferecido pela vida monástica (…).
 
Embora a doutrina búdica não se baseie numa explicação ou numa revelação acerca da criação ou do fim do mundo, nem por isso guarda silêncio total sobre o mundo fenoménico. Segundo as escrituras canónicas, o mundo não se limita ao planeta habitado pelos seres humanos e pelos astros concebidos como um sistema organizado. Pelo contrário, o mundo é composto de inúmeras unidades, cada uma das quais corresponde a um sistema solar. Estes sistemas solares são “qualidades” e de tamanhos diversos (…) Existem assim milhares de sistemas planetários (…) Contudo, as escrituras canónicas não apresentam estes pormenores como revelações sobre o universo. Trata-se de simples declarações dos “nobres seres”, os que compreenderam as coisas pelo desenvolvimento das suas próprias faculdades extra-sensoriais (…).
 
A doutrina búdica (…) interessa-se prioritariamente pela condição presente de cada indivíduo a quem diz respeito e prescreve-lhe que comece por compreender as coisas interiores e não as coisas exteriores: “não é pela viagem que se pode atingir o fim do mundo; no entanto, não há libertação possível sem se ter atingido o fim do mundo. Eu (Buda) ensino que estas quatro coisas: o mundo, o aparecimento do mundo, a cessação do mundo e o atalho que conduz à cessação do mundo - estão contidas neste corpo com uma vara de comprimento”.
 
Estas palavras mostram a natureza da mensagem de salvação que o budismo procura transmitir. Por um lado, essa mensagem diz respeito pessoalmente a cada indivíduo interessado e, por outro, o seu conteúdo diz sempre respeito ao momento presente. “Partir do tempo presente em que se vive” é um princípio muito importante no budismo.
 
Na maioria das religiões históricas a salvação é uma recompensa pelos actos meritórios. Não é o que se passa no budismo (…) A salvação budista apenas se oferece àquele que quer sair completamente da série das existências (renascimentos). Embora não deva cometer kamma (actos) demeritórios, também não é obrigado a afectuar kamma meritórios; deve sobretudo preocupar-se com o progresso interior que lhe permitirá deter a série de existências (…).
 
Pôr em prática cada vez mais profundamente os conselhos do ensino búdico permite chegar ao desinteresse, à renúncia total, à equanimidade. Segundo a palavra do Buda, neste estádio o indivíduo renuncia às coisas más, mas igualmente às coisas boas. Assim, quanto mais nos tornamos budistas, menos nos interessamos pelas querelas do mundo e até pelas querelas religiosas (…).
 
Nota final: As considerações precedentes dizem essencialmente respeito ao ramo do budismo chamado Theravâda (doutrina dos Antigos) ou hînayãna (Pequeno Veículo), presente no Sri Lanka (Ceilão), Birmânia, Tailândia, Laos, Camboja, regiões chinesas de população tai e alguns distritos do Bangladesh. O outro grande ramo do budismo, chamado Mahâyâna (Grande Veículo), que remonta a há cerca de dois mil anos, e “está dividido principalmente entre a área de cultura tibeto-mongol, de um lado, e, por outro, a área de cultura chinesa, que abrange, além da China, o Japão, a Coreia e o Vietname, considerando-se um caso à parte o do budismo nepalês de tradição sânscrita”, fundamentalmente endeusa, por assim dizer, a figura e o significado do Buda. Com efeito, “o budismo antigo sustentara que restava aos fiéis (…) o corpus de lei, isto é a colectânea das palavras do Buda; a sua mensagem constituía assim de certo modo uma presença permanente, uma vez que a Extinção o situara para todo o sempre para além do mundo (…). Com o surgimento do Grande Veículo e da sua “doutrina dos três corpos de Buda” “o corpo de Lei deixou de ser entendido como designando apenas a mensagem deixada pelo Buda, para significar antes de mais nada a sua modalidade de existência transcendente (…) Deste corpo de Lei emana um corpo, que permanece ainda para além das capacidades de percepção dos seres humanos (…) Vem seguidamente o terceiro e último nível de existência, o da dimensão humana (…) foi neste corpo que o Buda histórico âkiamuni mostrou aos seres a possibilidade da Iluminação e da Extinção (…). Para o Grande Veículo “o Buda está desperto desde uma Antiguidade que ultrapassa o entendimento humano; desde há incalculáveis idades cósmicas que ele exerce a sua incansável actividade de salvação dos seres num número infinito de universos (…).
 
Todas as citações (em itálico) são da obra “As grandes religiões do mundo”, Jean-Nöel Robert e Môhan Wijayaratna, Direcção de Jean Delumeau, 1993, Editorial Presença, 2002.

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