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01/04/12

“APRENDE A NADAR, COMPANHEIRO…”

Alcino Silva

(negativo do quadro de Vieira da Silva)



Sentia a pressão dos grandes acontecimentos e a ansiedade dançava dentro de si pelo seu envolvimento primeiro em acção de tal grandeza. Lembrou-se ainda uma outra vez, do que ouviu, do que foi conversado, das horas e dos tempos, do comportamento, de como agir. Controlou-se para não se colocar antecipadamente a caminho. Chegou cerca de dez minutos antes da hora anunciada. Aproximou-se vagarosamente apesar dos pés parecerem ter asas. Olhou em redor e sentiu o movimento de muita gente. Tentou distinguir a polícia, mas não era ainda visível. O barulho parecia chegar de muito longe o que significava que a inquietação se juntava ao medo e isolavam-no da multidão que crescia. Voltou a apelar à sua própria disciplina, certificou-se que o blusão estava bem apertado e nada se soltava. Pensou ainda na noite em que os papéis começaram a sair pela parte de trás do casaco que se dilatava do corpo com o movimento deste e a chamada de atenção de alguém que passava, «está a deixar cair papéis». «Papéis? Que papéis? Não, não são meus, é engano», e de seguida a retirada, pois as palavras naqueles pequenos rectângulos não enganavam. Mas hoje, não, havia conferido diversas vezes que o blusão estava bem cingido ao tronco. Seriam só mais uns minutos. Continuou a caminhar e entrou na praça e os olhos espantaram-se, estava cheia, seriam milhares de pessoas que se aglomeravam compactas pelos passeios, avenida acima. Valeram a pena as noites seguidas daqueles quinze dias, algumas a deitar às três da manhã para levantar às quatro, para nova caminhada. Panfletos ao terminar da noite, cartazes no início da madrugada, horas e horas a caminhar, transportar propaganda de um para outro local, iludir as operações policiais e essa vontade imensa de dormir, de deitar e deixar os olhos cerrarem-se, simplesmente dormir. Procurou contornar aquela massa de pessoas e aproximar-se da beira do passeio. Lá conseguiu. Estava na frente e olhou. Havia um burburinho e aparentemente ninguém conversava. Todos pareciam aguardar algo que não sabiam exactamente o que era, mas sabiam que iria acontecer, embora não soubessem como tudo acabaria exceptuando a intervenção da polícia que seria com a violência de sempre. Os minutos arrastavam-se e nem Artur sabia como começar, ou quem iniciaria aquele protesto. A hora chegou, na rua não passava um único carro e um silêncio tombou sobre a praça, era o instante que anuncia os grandes momentos. Lembra-se de ainda ter pensado na Sara quando na última semana tinham sido interrompidos numa distribuição de panfletos num bairro da cidade. Era meia-noite e nessas ocasiões tudo se torna suspeito. O medo coloca-nos os sentidos em alerta máximo. Artur procurou manter-se calmo e interrogava-se sobre como agir quando o braço da Sara o rodeou, num misto de protecção e de disfarce. Prosseguiram assim até se afastarem o suficiente. Porque não acabava agora aquele silêncio? Que fazer? Foi então que o António desceu do passeio e gritou, bem alto, mais alto ainda elevou um cartaz e foi indescritível a violência que sobre ele se abateu. Artur percebeu o que acontecia, mas não olhou mais do que um segundo enquanto também descia do passeio, a mão esquerda segurando o blusão, a direita abrindo os botões e agarrando nos panfletos e atirando-os ao ar, aos molhos. Subiam, abriam-se e espalhavam-se com a força da brisa, uma, duas, três vezes, ao mesmo tempo que atravessava toda a praça e a cada passo, pensava, vai ser agora, vai ser a minha vez, vão-me apanhar, ao mesmo tempo que se encorajava. À sua volta, só havia pessoas a correr, a fugir, num movimento desordenado, o silêncio terminara, apenas, berros, gritos. Atravessou toda a praça sem nada ter ocorrido. Subiu o passeio e olhou para trás. Era o caos. Toda a gente fugia e já se distinguia a miserável polícia política. Artur juntou-se a uma onda que passava e procurou o passeio esquerdo que subia. Até ao momento continuava incólume, mas foi no instante de sair que a sua imunidade terminou. A massa de gente subia e nas margens, animais de matraca, malhavam literalmente sobre os corpos de quem passava. Era indistinto quem atingiam, obedecendo o critério apenas ao movimento de subir e descer o braço. Artur percebeu ainda antes de acontecer. Os seus olhos cruzaram-se, um segundo talvez. A pequena matraca caiu-lhe sobre a omoplata direita, mas os olhos de Artur não se movimentaram, ficaram nos olhos do outro, até hoje.

PS – há dias, ao pensar que há 30 anos a polícia assassinou impunemente dois jovens nas ruas do Porto enquanto protegia os lacaios servis da UGT, e ao ver a tropa do Dr. Miguel Macedo regressar aos tempos do capitão Maltez, na violência e na actividade pidesca de infiltrar manifestações de liberdade e cidadania, lembrei-me desta história há muito ouvida. Estamos no tempo do verso do Sérgio Godinho ao contrário, o fascismo está a passar por aqui.

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