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01/06/12

TÉTIS TIRA A MÁSCARA

António Mesquita

"Os Lusíadas" (ilustração de Alfredo Roque Gameiro)


«Aqui, só verdadeiros, gloriosos
            Divos estão, porque eu, Saturno e Jano,
Júpiter, Juno, fomos fabulosos,
    Fingidos de mortal e cego engano.
Só pera fazer versos deleitosos
         Servimos; e, se mais o trato humano
         Nos pode dar, é só que o nome nosso
          Nestas estrelas pôs o engenho vosso."

                                   "Os Lusíadas, Canto X"


No canto final, Tétis abre os olhos ao Gama. Ela e os outros deuses são de fábula e só o Deus do rei é verdadeiro.

Depois de ao longo do extenso poema termos sido conduzidos por personagens da mitologia greco-romana, eis que, num golpe de teatro, todo o cenário vem abaixo. Ao contrário de Dante que se despede de Virgílio para subir à esfera que o pagão não pode penetrar, Camões diz-nos que tudo foi teatro, que os heróis de Tróia e os deuses que com eles se entretiveram são mentiras da arte e que o leitor deve esquecer tudo isso para aproveitar a lição da coda final em que se revela a verdade de Cristo.

Ao fazê-lo, ao depor as máscaras e os trajos antigos, guardando-os para outra ocasião em que pudessem voltar a ser úteis, Camões foi tão injusto com a Antiguidade como a censura inquisitorial o exigia. Assim o poder impõe a sua marca de fealdade mesmo na obra do génio.

Resta-nos a consolação de que o expediente a que o nosso maior poeta teve de recorrer o torna, ao mesmo tempo, um percursor da "distância", mais ou menos crítica, em que alguns modernos, como Brecht, quiseram ver um valor revolucionário.

Claro que Camões nunca aponta para a máscara quando narra a grande viagem e as intervenções no concílio dos olímpicos. Guardou isso para as últimas estrofes, como quem pede desculpa de ter usado um artifício.

A verdade, também, é que o renascimento tardio em que escreveu Luís Vaz já só lhe permitia uma revisita irónica à mitologia.

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