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01/01/13

O TONECO

Mário Faria
http://mixdoce.blog.com/2011/08/06/velhice/



Quarta-feira, dia de visita obrigatória à minha Mãe no Lar. Nesse dia, não a encontrei no local do costume. Informaram-me que muito provavelmente estaria em tratamento na Fisioterapia. Fui lá: estava pronta para sair e vinha a mancar. Perguntei-lhe se estava magoada e respondeu-me que tinha uma unha do pé encravada que lhe provocava dores que, na exposição pormenorizada da maleita, variavam entre : fortes, fantásticas e medonhas. Já tinha ido ao médico e a enfermeira feito o curativo : ficou com o dedo entrapado e andava com um chinelo aberto.Estava mais serena, mas ainda preocupada, pois as dores não tinham abrandado quanto quereria. Já não eram fantásticas, nem medonhas, mas eram ainda um bocadinho fortes.

Fomos para a sala de estar. Conversávamos sobre o Natal, quando se junta a nós um dos utentes, cuja presença era regular naquele espaço e que costumava cumprimentar-me com cordialidade. Apresentou-se : Sou o Toneco : ando entupido e preciso de desabafar. Contou-me uma longa história e prometeu que, em tempo oportuno, me daria alguns conselhos e deixaria alguns avisos para que a vida da minha Mãe na instituição fosse satisfatória. Era um veterano : já la estava há uma dúzia de anos.

Contou-me, com as lágrimas nos olhos, que a mãe morreu em casa após o parto, que a vizinha que a assistia não conseguiu valer-lhe e que o pai trabalhava no campo aquando da ocorrência. Tinha quatro irmãos, todos mais velhos. Os três rapazes foram para o amo : o patrão lavrador, lá do sítio, que lhes deu guarida, pão e trabalho. Dormiam no estábulo, almoçavam no campo e jantavam nos fundos da cozinha com o resto do pessoal. Ao domingo de tarde, eram autorizados a visitar o pai e os irmãos. O Toninho e a irmã estavam com o pai, mas era a vizinha que tratava deles. Assim viveram até o pai se ter casado novamente, com uma viúva, também ela com cinco filhos. Proprietária rural e com bens, a vida deve ter melhorado : não se queixou da madrasta, reconheceu os filhas dela como irmãos pelo que conclui que a integração na nova família foi feita sem dor, apesar de ter sido acrescida com mais três membros. Eram treze irmãos ao todo, como referiu.

A minha Mãe, entretanto, mostrava-se impaciente. A atenção que prestava ao Toneco diminuiu a atenção que lhe costumo prestar. Além do mais, era hora do lanche como se adivinhava pela crescente impaciência que o rosto marcava. Interrompeu a conversa e perguntou-me : “Não queres comer nada? Não tens de ir embora ?.
-“Vamos , respondi, sem querer que o Toneco interrompesse o seu desabafo.
O Toneco compreendeu, provavelmente, a mensagem subliminar que a minha Mãe lhe tinha endereçado. Por isso, saltou no tempo e contou mais rapidamente o que faltava narrar. Retomou a palavra, mais calmo e menos comovido.

Um dia cheguei a casa, virei-me para o meu pai e para a minha madrasta e disse : a partir deste momento vou deixar de ser o Toninho e vou passar a ser o Toneco. Vou sair de casa : arranjei um bom lugar na “BR e vou casar. E, assim foi. Fez carreira na empresa, e não explicou porque (e quando) emigrou para a Alemanha. Lá trabalhou numa fábrica de artigos electro-domésticos. Deu para amealhar e regressar com um bom pecúlio.

Esperava viver a velhice de forma calma e sem sobressaltos. Não teve filhos, mas tinha uma família comprida. Um brutal acidente, deixou-o às portas da morta a ele e à mulher. Safou-se, mas ficou bastante debilitado. A mulher ficou paraplégica e morreu poucos anos depois. Só e empurrado pelos familiares, resolveu ir para o Lar. E em boa hora o fiz. Foi aqui que conheci a minha actual companheira. Apaixonámo-nos e decidimos juntar os trapinhos. Falei com o presidente que nos arranjou um bom quarto na instituição e a preço módico : a soma do que individualmente pagávamos”.

Deu um novo salto e, de forma revoltada, continuou:”Os filhos da minha companheira detestavam-me. Diziam que era um gabiru e que me estava a servir dela e só queria o seu dinheiro, Usaram todos os meios de pressão – tiraram todos os bens materiais que a minha companheira dispunha e, depois, todos os apoios que lhe concediam como contrapartida da doação desses bens – para a obrigar a sair do Lar e a ter de aceitar viver com o filho mais novo. Um ultimato infame que esses filhos da p*** nos fizeram e a que tivemos de nos submeter, por mútuo acordo”.

A companheira do Toneco, sentada um pouco atrás, ia sorrindo de forma benevolente. Levantou-se e veio buscá-lo. Despediram-se de mim e desejaram-me bom Natal. Encaminharam-se para a saída vagarosamente, o Toneco voltou-se e disse : Gostei muita desta conversa. Havemos de repetir”.

A minha Mãe suspirou de alívio. O lanche estava mais perto, finalmente. Fomos para o Bar a que não falta freguesia. Como tinha falado pouco comigo, pôs a conversa em dia. Repetiu as queixas das dores (fortes, fantásticas e medonhas) de forma ainda mais minuciosa a que juntou a crónica sobreos imensos defeitos da companheira do quarto (da “casa” como muitas utentes costumam dizer).Tosse, tosse, tosse, mas é tudo mentira. Ela não tosse, ronca, para não me deixar dormir. Faz de propósito. Bandida! referia revoltada a minha Mãe.Os próximos capítulos não prometem nada de bom. Na minha cabeça, ecoavam as palavras do enfermeiro chefe do Lar :Com os homens muito raramente há desentendimentos, com as mulheres são problemas e mais problemas”.

A hora da visita chegava ao fim. Despedi-me e na porta da entrada do Lar, estava o Toneco com a companheira, muito juntinhos e a falarem em surdina. Apesar de separados, continuam muito próximos. Todos os dias o Toneco recebe a visita da companheira, ambos alheios à má língua de que não conseguem livrar-se. O amor, a solidariedade, aamizade e a partilha convivem com o conflito, a rivalidade, a inveja e a posse. Os velhinhos não são excepção. Os poderzinhos que informalmente se constituem entre os companheiros e a relação que conseguem estabelecer com o sistema não é despicienda para a afirmação do seu bem estar. E lutam enquanto podem, com todas as forças que têm.

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