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01/10/13

O DIA EM QUE O POETA MORREU

Alcino Silva

Manuel António Pina

A noite chegava com a sua tristeza, a sua escuridão, os seus negros temores, os seus silêncios e vazios, transformando a solidão numa vastidão oceânica, chegava e sorrateira roubava o espaço à melancolia do dia, cobria-a como quem estende um manto e deixa apenas momentos ocos, o olhar sem nada. O seu pensamento caminhava derrotado como em tantos outros crepúsculos outonais, no delírio de lágrimas silenciosas que tombavam escondidas na alma, enquanto procurava a luz desse sorriso que não olvidada e lhe servia de protecção perante estes vapores cinzentos que a noite trazia e se transformavam em espaços dessa escuridão que esconde as estrelas e o afogavam nos temores negros das trevas. Entre as gentes, perdido no trânsito, fugia clandestino, camuflava na estrutura do automóvel os seus medos nocturnos, como uma criança refugiada no canto do quarto, desabrigada e aguardando que alguém acenda uma luz que a proteja. Num primeiro instante não compreendeu, mas quase logo saiu do torpor que o levava e os seus ouvidos débeis escutavam a notícia que tornava a noite ainda mais escura, dessa negrura impenetrável que chega a submergir a tristeza e atrai para si todos os pavores encobertos. A notícia repetia-se e não deixava dúvidas, o poeta não resistira à chegada da noite e deslizava vencido pela mágoa do corpo que lhe fugia deixando a alma no desamparo do sonho. Na recordação da viagem pela vida, ouvia-se a voz grave da notícia lendo as belas palavras escritasdo poeta e a sua atenção maravilhada agarrou-se à poesia com mãos de náufrago e procurou no sorriso que iluminava os seus olhos o amparo que necessitava, como todos os dias, mas ainda mais agora que o poeta partira. Mas na ânsia de chegar a terra, a memória traiu-o e na mensagem que enviou não eram as palavras do poeta que seguiam, mas as suas, «Entra com o teu olhar no meu quarto, e não deixes que as sombras da noite me levem». No escuro surgiu um farol e os versos que o poeta deixava como bandeira, sopravam agora os ventos do seu destino e no porto de abrigo que procurava, a sua mensagem prosseguia, «Entra no meu quarto e fica, com a clara e limpa luminosidade do teu olhar, corre as cortinas que encerram a minha solidão, e estremecem as paredes de silêncio, entra no meu quarto e deixa-me o teu olhar». A escuridão do crepúsculo que arrastava a vida do poeta transformou o infinito universo numa tempestade boreal, agigantou o mar que o arrastava e o sorriso que o protegia pareceu então perder-se como se a luz última definitivamente se apagasse. Susteve o alento que lhe restava na poesia do poeta que se extinguia e com ela enfrentou o adamastor que lhe cercava o caminho, lembrando-se por fim das verdadeiras palavras do trovador para vencer a adversidade e o medo e recitou-as e nova mensagem escreveu, como um apelo, um cântico, como alguém que estende os braços abandonados antes de cair no abismo do desconhecido, “Protege-me com ele, com o teu olhar, dos demónios da noite e das aflições do dia, fala em voz alta, não deixes que adormeça, afasta de mim o pecado da infelicidade”.(1)

(1) – Manuel António Pina, Completas

 

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