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01/04/14

AS PESSOAS-LIXO

Mário Martins

(Foto: Jornal Público)

 

“O nosso quotidiano civilizado está cheio desses seres que mantendo uma similar aparência física, se afastaram de tal maneira da humanidade que perderam o laço comum. Pelo que estão reunidas as condições objectivas e morais para a chacina dos homens-lixo. E essa é já uma prática quotidiana. Imposta pelas autoridades, desculpada pela moral pública, exigida pela economia”

Moura, 2000, p.14

 

Se há fenómeno que melhor representa a demissão do Estado e mais envergonha a Sociedade, esse é, sem dúvida, o das pessoas sem-abrigo.

“O conceito de sem-abrigo utilizado em estudos recentes parece acentuar e defender a questão da habitação como prioritária. Segundo a maior parte dos autores, sem a questão da habitação resolvida dificilmente poderemos intervir na alteração das restantes dimensões inerentes ao ser humano (sociais, psicológicas, económicas, entre outras).”

Pereirinha (2005) identifica dois tipos de sem-tecto: os sem-tecto crónicos, com muitos anos de rua, há muito despojados de regras e de sonhos, onde a doença (física e mental) e a degradação física imperam; e os novos sem-tecto, pessoas que se encontram há pouco tempo na rua por múltiplas perdas (profissionais, familiares, individuais), que necessitam de um mecanismo de mediação que lhes permita reconstruírem o seu projecto de vida.”

Thelen (2004) fala na privação social dos sem-abrigo, a que poderemos chamar de nudez social. Tem sobretudo a ver com as peculiaridades do seu modo de vida. A rua - sejam ruas, praças, dormitórios, cozinhas de sopa, abrigos de dia etc. - é para o sem-abrigo, um meio muito hostil, no qual a sua integridade psicológica se encontra ameaçada. Vivendo constantemente nos limites, a pessoa sem-abrigo tem de se adaptar ela própria à rua, universo univocal que exclui qualquer um, ao mesmo tempo que desenvolve estratégias de sobrevivência. Os sem-abrigo, não tendo um projecto, repetem um padrão de falhanço e sofrem de uma falta de resiliência, estão encurralados no presente e não têm nenhuma consciência do tempo. Consequentemente, estas pessoas são incapazes de definir quais são as suas preocupações assim como os seus desejos. Ainda o mesmo autor refere-se aos sem-abrigo como estando parados, numa vida em que a satisfação de necessidades básicas, tais como encontrar comida e um lugar para dormir, está sempre presente. Vida esta preenchida pelo álcool, tabaco e pequenos expedientes.”

Tornar-se sem-abrigo resulta de um processo progressivo de perda de laços afiliativos com as várias estruturas sociais: a família, a escola, o trabalho, a religião, a política e o lazer (Bahr, 1973).”

Como é possível este paradoxo de as sociedades mais desenvolvidas produzirem pessoas-lixo? Para não falar de Portugal, em que é a Santa Casa da Misericórdia, e não o Estado, a sair para a rua para fazer o levantamento dos sem-abrigo, e a gizar e aplicar medidas para minorar a sua situação, talvez que uma parte importante da resposta a esta questão esteja no modo como, por exemplo, a Comissão Europeia aborda o fenómeno:

“A Comissão Europeia reconhece que o fenómeno dos sem-abrigo é uma questão complexa, pois não diz respeito exclusivamente a uma ausência de habitação. Muitos dos sem abrigo também se debatem com múltiplos problemas – doença mental e física, desemprego – que os arrastam para uma espiral de pobreza. Por isso, diz ainda a Comissão «é essencial não focar apenas as pessoas que vivem na rua, mas considerar o fenómeno dos sem-abrigo numa perspectiva mais abrangente» (cit. in Comissão Europeia, 2003).”

Como se pode, de facto, procurar resolver o grave problema social das pessoas sem-abrigo quando se considera “essencial não focar apenas as pessoas que vivem na rua”? Os resultados desta abordagem política estão à vista nas ruas e nas estatísticas: 116 milhões de pobres ou em risco de pobreza na União Europeia, em Março de 2013. Se o desemprego galopante arrasta as pessoas para a pobreza ou para o seu limiar, não se deve, no entanto, confundir os sem-abrigo com os pobres que, melhor ou pior, têm casa, relações familiares e/ou de vizinhança e uma qualquer fonte de rendimento. As pessoas-lixo estão, sozinhas, na base da pirâmide social, mas a solução desta chaga social devia estar no topo de uma agenda política decente.

Nota: As partes do texto em itálico foram extraídas do sítio da AMI (Tese de mestrado de Ana Ferreira Martins: "Mulheres Sem Abrigo na Cidade de Lisboa" - Fev2007).

 

 

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