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01/04/14

VIDA E DESTINO (3)

Alcino Silva

Estância Puerto Consuelo, Puerto Natales, Província Última Esperança, 31 de Março de 2014

à redação da Periscópio

sento-me nesta tarde última do mês e pergunto-me que palavras vos posso enviar do interior deste silêncio onde agasalho a alma, protegendo-a do mundo e da maldade humana. Olho o exterior onde o crepúsculo se vai sentando e puxando para si a roupa da noite que não tarda cobre de negro a terra e a água, permitindo que o céu se encha dessas estrelas luminosas que formam as constelações que nos orientam na ausência da luz. Os dias são agora de muitas e cinzentas nuvens e o azul no infinito é agora um aparecimento raro. Evito subir o fiorde, pelo frio e pelo vento que em certas horas sopra agreste sobre a face. Desço mais à cidade e visito a biblioteca, por ali passando as tardes. Há dias, deixei o olhar deambular pelos títulos e sustive a atenção em Vida e Destino1 de Vassili Grossman. Não me amedrontei com o tamanho, sentei-me e parti para uma fascinante leitura. Vida e Destino é um grande romance, uma obra notável, pela construção da história, pela reconstrução do momento, pela criação de seres humanos terrenos, quer dizer, sem a áurea do sonho romântico que gera seres excepcionais, mas antes, onde convive a resistência e a fraqueza, a paixão e a ambição, a nobreza e a dádiva. A história contada, nasce na iminência de uma grande derrota, na qual se exacerba a resistência, mesmo parecendo que o fim é inevitável, ao mesmo tempo que na retaguarda se reúnem forças para transformar o destino. Quando já quase nada resta e o Volga adquire a dimensão de uma necrópole final onde vai repousar o que parece não ter passado de uma quimera, eis que do subsolo do véu de neve invernal, renasce um poderoso exército que em velocidade estonteante, rompe as defesas que pareciam inexpugnáveis, destroça os festejos de uma vitória que já se estendia pelas estepes, e numa tenaz impressionante, afoga uma multidão de soldados num miserável trapo de colunas destroçadas e a história termina, com os carros de combate vitoriosos rolando imparáveis a caminho do oeste. É de facto, um livro impressionante, uma leitura que nos deixa num limbo de emoção, de uma encruzilhada de sentimentos, numa reflexão profunda sobre a vida humana, sobre a participação dos Homens na História e, sobretudo, fazedores dessa História. A batalha de Estalinegrado ficará nos anais da História, como uma vitória do querer, da perseverança, da paciência, da capacidade de resistência, da grande estratégia que os seres humanos podem construir, mesmo que para se derrotar uns aos outros, e a vitória de um sistema social que permitiu motivar, enaltecer, arrebatar, os seres humanos em nome de um objectivo comum e colectivo. Vassili Grossman é judeu e faz questão de o afirmar, mas a grandeza do romance permite-nos ultrapassar esse assumir de uma diferença que não há razão para salientar.O autor traz para primeiro plano essa vitimização através do personagem principal do romance, Víktor Pávlovitch, colocando-o no pedestal do cientista emérito, que iria permitir que o país alcançasse o topo no avanço da ciência. Ao mesmo tempo que o coloca como um perseguido, mostra que não podem dispensá-lo, que sem o seu conhecimento e saber, a pátria marcaria passo. Apesar deste tropeção judaico, o romance em nada se diminui e qualquer um pode substituir o personagem, porque o mesmo assume a defesa de uma dignidade, de uma liberdade, de um idealismo que qualquer um de nós, pode e deve subscrever. A União Soviética foi um sonho, de certa forma até, romântico. Podemos olhar este passado já com alguma serenidade, vinte anos após a sua diluição no pó da história. É possível afirmar que o primeiro Estado dirigido por aqueles que trabalham, resolveu grandiosos problemas da humanidade, do ponto de vista, social, económico, cultural, educacional e de muitas outras esferas da vida. Pecou, não soube, ou os contornos da história que rodearam a sua construção, não o permitiram, uma resposta, significante de um convívio entre a liberdade individual e colectiva, na qual se inclui na primeira, a liberdade de pensamento e a sua expressão, e na segunda, o interesse de que cada um, só é importante se souber conviver com o colectivo, o interesse que todos abrange, que todos alcança, e alcançando todos, alcança por inerência, cada um individualmente. Através de uma escrita prodigiosa Grossman traz-nos a realidade do país e da sociedade de uma forma tão palpável que nos transporta para o centro dos acontecimentos e para a vida das personagens e é espantoso na forma como caracteriza os actos e as acções do ditador quando agindo em nome do colectivo, sabia interpretar os sentimentos e as maldades humanas na sua complexidade, ora aparecendo como a figura sinistra, ora como a personagem que abre caminhos. «É que bastava uma palavra dele para que surgissem obras de construção gigantescas, para que colunas de lenhadores fossem atirados para a taiga, para que multidões de centenas de milhares de pessoas cavassem canais, erguessem cidades, construíssem estradas nas terras da noite polar e do gelo eterno. Ele exprimia em si um grande Estado! O sol da Constituição de Stálin… o Partido de Stálin… os planos quinquenais de Stálin… as obras de construção de Stálin… a estratégia de Stálin… a aviação de Stálin. O grande Estado exprimia-se nele, no seu carácter, no seu feitio.» Vassili Grossman levou-nos mais longe, fazendo-nos percorrer os silêncios das prisões longínquas, dos quartos de luz ténue, das levadas de homens a meio da noite, apenas por suspeita ou delação. A história tem os seus tempos, os seus momentos caracterizadores, os condicionalismos que cercam os homens, e sabemos que essa mesma história não se repete, sobretudo porque o tempo não se imobiliza, mas também sabemos que os homens numa estupidez que parece doentia e lhes apaga a chama do pensamento, ou então enaltecidos por uma cupidez extravagante, teimam em repetir os erros. No entanto, os tempos mudaram, mudaram muito. Esta grande obra de Grossman para além do seu valor literário e histórico, permite esta reflexão interior, esta ponderação sobre o passado, fazendo-a reflectir sobre o presente e necessariamente sobre o futuro. Mas este livro, tão envolvente, tão dramático e ao mesmo tempo tão cativante, fala-nos, mostra-nos também as debilidades e grandezas humanas perante o amor que nos aparece reflectido em dois trios, um formado por um homem e duas mulheres, e outro composto por uma mulher e dois homens. De ambos, retive a vida de Piotr Pávlovitch. É o comandante de uma unidade de carros de combate que vai ter um papel decisivo na contra-ofensiva do Exército Vermelho. Durante meses, na retaguarda prepara, treinando e disciplinando, as tropas que irão empurrar os alemães para centenas de quilómetros de distância. Nesse espaço de tempo, consegue encontrar as horas necessárias para dedicar a Evguénia Nikoláevna, o grande amor que o faz empenhar-se com maior felicidade nas suas tarefas da vida. Dedica o pensamento a esta mulher para quem encontra sempre um presente e com quem sonha viver nos dias de paz. Vive-a intensamente. Contudo, pressentia-se algo vazio no comportamento de Evguénia Nikoláevna. Mais tarde, quando já tinha partido sem deixar qualquer palavra escrita, não saberá responder se o amava ou se apenas amava o amor que ele lhe dedicava. Na véspera de um combate decisivo Piotr Pávlovitch não perderá o controlo das suas obrigações, nem da sua dignidade, mas olhando o seu comportamento podemos ainda apercebermo-nos da dimensão do seu amor, pois apesar de a ter perdido viveu fazendo-a«participante do seu trabalho, da sua desgraça, dos seus pensamentos, fê-la testemunha dos dias da sua fraqueza, da sua força… E as cartas rasgadas não desapareceram, as palavras lidas dezenas de vezes, ficaram-lhe na memória, e os olhos dela continuavam a olhar para ele das fotografias rasgadas». A grandeza de Piotr Pávlovitch ficará ainda vincada de forma indelével quando no momento de iniciar a ofensiva, corajosamente assume a desobediência hierárquica, prolongando o fogo inicial de artilharia para evitar arriscar desnecessariamente a vida dos militares que iriam cavalgar os blindados vitoriosos. A marcha para oeste tinha começado e um dos grandes artífices triunfantes desse movimento inicial, era ao mesmo tempo,um homem destroçado por um amor que perdera, pese a intensidade com que o viveu e se lhe dedicou. Ao deixar a biblioteca e alcançar a rua, após esta leitura, olhando as águas azuis e crepusculares do fiorde, pensando na pátria longínqua e nos tempos miseráveis do presente, sinto que mais do que uma utopia, o sonho não pereceu, para mim está vivo como o vermelho do ferro incandescente e a cada dia que nasce sinto-me caminhando sobre os carros de combate que triunfantes continuam a rolar para o futuro. Um abraço, de longe.

1 Vida e Destino, Vassili Grossman, D. Quixote, 2011

 

 

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