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01/05/14

CARTAS DE LONGE (4)

Alcino Silva


Estância Puerto Consuelo, Puerto Natales, Província Última Esperança, 30 de Abril de 2014

à redação da Periscópio


suponho que os vossos dias são já visitados por uma amena temperatura primaveril e recordo como por esta época as estradas do Minho se enchem dessa cobertura colorida formada pelas flores que brotam como se renascessem da profunda letargia invernal e nos fascinam o olhar com a mistura de tons como se acasalassem entre si para gerar novas cores e encher de perfumes os jardins. Por aqui, é esse rigor do Inverno a chegar, com o peso das suas chuvas que rapidamente se transformam em neve, os ventos gélidos que descem livres das montanhas e as temperaturas a não conseguirem forças para superar os 12º. É fácil, nestes dias, lembrarmo-nos do território que deixamos, com o seu clima temperado e de ameno ambiente, e o mar, o azul do mar, no horizonte abraçado ao azul do céu, perdendo-se ambos no infinito dos nossos olhares. O soprar forte da ventania não deixa em sossego o silêncio e abre-nos a solidão como quem desaperta um casaco. Com este frio acampado em redor de mim, vou pouco à cidade, deambulo por aqui, como quem procura um caminho que não existe. Uma vez por semana, desço a estrada e procuro na biblioteca os livros que me servem de consolo neste ermitério onde me escondo. Entre os últimos livros que me acompanharam de regresso, trouxe uma história bela e comovente, quase um poema em que se estende o drama da vida da Palestina e do seu povo. Em A Porta do Sol alguém nos narra a tragédia em que os judeus há 70 anos mergulharam esse território mártir entre a Síria e o Neguev. Perante a morte iminente de um herói palestiniano, o narrador vai desfiando a sua vida que é ao mesmo tempo a história da desdita da sua pátria, no seu leito de moribundo, como se esse relato lhe suspendesse a morte, retendo-lhe a vida. Conta, fala, questiona, mas sem azedume, muito menos ódio, desse que sobra como baba aos judeus, relembra apenas, com lugares, com nomes, com datas, fala dessa Catástrofe que chegou em 1948 e parece não ter fim. Os judeus sobreviventes dos campos de extermínio nazi, chegados a uma terra que nunca lhes pertenceu, rapidamente se transformam em algozes e montam os seus campos de concentração em que o extermínio é mais lento, sem deixar de ser devastador. Como se escreve no livro, até «mataram as árvores». A meio da história, escrevo a Elias Khoury, o autor e pergunto, quem é Nahila?, e na resposta, diz-me que Nahila é a Palestina, o seu sofrimento, o seu destino, o seu lamento, a história das suas mulheres enxovalhadas, torturadas, violadas, abandonadas pelos maridos combatentes, ou espalhados pelo êxodo, pelos campos de refugiados no Líbano e na Síria, Nahila representa também as mulheres que vêem os filhos crescer com o pai longe, as mulheres coragem que resistem com dignidade. Nahila é a mulher que é presa porque está grávida e se assim é significa que o marido a visitou. Lançada no isolamento sem luz durante três dias é agora interrogada. «Naquela época», diz-nos o narrador, «os israelitas ainda não tinham desenvolvido a arte da tortura das cadeiras, que só inventaram após a invasão do Líbano. Amarravam o prisioneiro à cadeira e abandonavam-no naquela posição durante uma semana, com um saco preto enfiado na cabeça. Uma vez por dia, os soldados levantavam o saco à altura da boca e davam ao prisioneiro um pedaço de pão e um golo de água e, sempre com a cabeça tapada, levavam-no à casa de banho apenas uma vez. No final, o prisioneiro já não sabia quem era, os membros tinham-se tornado rígidos e a escuridão aterrorizava-o. Era, então, levado para interrogatório, cambaleante e enfraquecido, sem qualquer sensibilidade no corpo, as costas mais pesadas do que um saco de pedras.» Mas agora só querem saber onde está Yunis. Não sei, responde de cabeça erguida Nahila. Então quem é o pai da criança? Não sei, volta a responder. Não sabes? Não, dormi com vários homens, não sei. Sou puta, porquê no vosso bonito Estado não há putas? Não tens vergonha atira-lhe o interrogador. Vergonha?, «depois de terem destruído tudo como ousam vir agora defender a honra e a reputação? Roubaram as nossas terras, expulsaram-nos delas e vêm dar-me lições de moral?» Nahila, responde-lhes com a dignidade que o Estado criminoso dos judeus não conhece. Regressa a casa e não denunciou o marido. Ao longo do livro percorremos esse sofrimento das gentes da Galileia onde os judeus até as oliveiras destruíram. «Em 1948», os palestinianos, «mudaram das suas aldeias para a escuridão», onde ainda hoje permanecem enquanto essa intrujice que dá pelo nome de «comunidade internacional» continua a deixar impune e a proteger os crimes do Estado judeu, um Estado religioso e fanático. Mas a história não perdoa e um dia, A Porta do Sol, abrir-se-á com as cores do futuro para os palestinianos. Recebam um abraço da terra da Última Esperança.

 

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