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01/06/14

CARTAS DE LONGE (5)

Alcino Silva

Estância Puerto Consuelo, Puerto Natales, Província Última Esperança, 31 de Maio de 2014

à redação da Periscópio


no momento em que alinhavo estas palavras na carta que ainda esta noite colocarei no correio para vos enviar, o vento sibila no exterior da casa e faz estremecer os vidros duplos, arrastando no seu zumbido bátegas de água grossa que já não sei se chega líquida ou ainda com essa solidez da neve. Está frio, muito frio, pois a temperatura não consegue reunir forças para superar os 5º e quando a noite vem, exausta, tomba em vários graus negativos. Na minha frente a lareira crepita no queimar da madeira para minha salvação. Sair para vadear nas redondezas é quase uma decisão audaz, pelo que as minhas caminhadas nas margens do fiorde ou em direcção à cidade interromperam-se e os livros vão sendo lidos de forma repetida. Os antigos egípcios chamavam ao Inverno, Peret, a estação do plantio e do crescimento, mas nestas terras austrais, no Inverno apenas cresce a solidão e o silêncio, como se ambos nos embrulhasse e nos deixasse nesse torpor do espanto e da saudade. Para não sentir a imobilidade do tempo, vou escrevendo cartas de despedida e redigi um diário inventado que vos envio.

Domingo

Regresso de novo aos jardins de árvores frondosas e também hoje com a angústia a marcar-me a memória, fazendo do passado, presente. Sinto o murmurar do vento nos braços e no rosto destas árvores e chega-me a frescura dos nenúfares, a quietude do papiro e o sereno correr da água da fonte que tomba em sonolentas pingas cantantes. Por fim, a beleza da buganvília lilás, lembrando a que tenho sem flor, assemelhando-se à minha vida, também ela, sem flor que frutifique. Voltei a este lugar do passado onde depositei dessas lágrimas que não choramos, por um amor que me fugiu, que partiu, pese embora as imensas amarras que lancei, todas essas cordas marinhas que atirei e pela proa resvalaram sem o prender. Por onde navegará esse barco que não soube acolher no meu porto?

Segunda

De um momento para o outro, regressam as palavras e os pensamentos do passado, o retorno a um tempo que sei desaparecido. O mar está calmo debaixo de um sol temperado e o vento vai soprando entre a brisa e a aragem incomodativa. Há uma dor que volta, essa dor dos comboios a descarrilar, dos barcos a naufragar, das despedidas inconsoláveis, como quando o mar se fecha engolindo os sonhos, deixando apenas silêncio e a alma cheia desses ribeiros que descem das montanhas onde se desfazem as quimeras como a Primavera faz aos gelos de Inverno.

Terça

Procuro-te nestes jardins de beleza, sentindo o teu rosto nas palavras simples que se soltam do voar das aves. Olhares meigos vagueiam entre a vegetação. Levo estes instantes que comigo passearam entre os arbustos e as árvores cansadas de tanta invernia. As flores hibernam no sossego do fim da manhã, guardando as suas vivas cores para o tempo primaveril.

Quarta

Uma sala, filas de cadeiras em anfiteatro, no centro, eu, solitário no meio desta plateia. O palco vazio aguarda personagens que falarão de livros. Eu também aguardo como sempre aguardei, pois a minha vida sempre assim foi, aguardar alguém, um lugar, um espaço, um tempo, e no entanto, nada chegou e assim tenho prosseguido, com ar perdido, a alma magoada e uma tristeza que não descansa. Parece chegar sempre alguém quando um espaço se aproxima de mim e quando os olhares parecem voltar-se na minha direcção, é um equívoco, olham para quem, entretanto chegou.

Quinta

Porque neva tanto nesta tarde de sol? Porque tantos flocos brancos descem apenas sobre mim? Porque entristece a minha alma sem que esta luz a acenda? Porque escrevo palavras de saudade e não encontro outras de alegria? Ah!, como preferia respostas no lugar das perguntas. Como preferia amar-te sonhando do que em sonho amar-te.

Sexta

Hoje procurei o lago dos nenúfares para te escrever, escrevendo-me. O lado mais fresco está ocupado e contento-me com este lugar onde o sol rompe por entre a frincha dos ramos. As palavras agitam-se com pressa de viagem, como cativas do teu silêncio. Como podemos estar tão próximo e tão longe do lugar que procuramos? Sussurros melodiosos vaporizam o lago e nos caminhos acendem-se manchas de luz solar.

Sábado

Sinto-me perdido como se o mundo estivesse a fugir de mim. Os sonhos colidem comigo e a realidade surge do nevoeiro matutino como um fantasma nocturno, enquanto escuto a tarde a caminhar à procura da noite. O céu cobre-se de nuvens outonais e apenas um rasgão de azul dá cor à paisagem. Há uma sensação de infinito na linha que separa o mar do céu. Pressente-se nesse traço tão recto uma continuidade de descoberta, de curiosidade. Os navios, sempre parados, como numa fronteira, parecem olhar vigilantes para ambos os lados.

Recebam um abraço desde o sopé da cordilheira andina.

 

 

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