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01/04/15

CARTA AO CAPITÃO SALGUEIRO MAIA




Estimado capitão Salgueiro Maia, preparam-se os portugueses para celebrar mais um aniversário dessa madrugada primaveril e serena em que a liberdade foi semeada pelos campos e pelas ruas das nossas cidades tão imobilizadas no tempo, nessas teias aracnídeas que o ditadorzinho plantava com esmero ou com violência no jardim do nosso território no qual, uma população há muito amedrontada, parecia arrastar a sua existência por um carril eterno onde rolavam esferas controladas pelos fios que o prócere de S. Bento manipulava como lhe parecia ser de melhor encanto. E sorria, de longe a longe, a bestazinha. Mas nessa noite, meu capitão, a coragem saltou em força, arrebatando todos como uma haste da mesma árvore e rebentaram as correntes desse portão de ferro que nos impedia de olhar a eternidade. Venho de longe, meu estimado capitão, de uma outra noite, longínqua no tempo, mas também ela de coragem e de liberdade e vivida nessas ruas de Lisboa e estendida pelo país adiante, daí que também eu, apesar de simples mester da tanoaria, compreenda os seus sentimentos quando os seus carros rolaram pelas sombras nocturnas em direcção ao Sul com a D. Natércia acenando da janela e orando para que tudo fosse alcançado. E foi meu capitão, pelo menos nesse tempo irreal ou nesse dia inteiro e limpo como escreveu a poetisa. Vejo-o ainda com aquele ar gaiato no centro da cidade, arma na mão que parecia não servir para nada, a distribuir instruções a planear sobre o acontecimento a dirigir-se de rosto aberto, firme, corajoso, destemido, libertador para os carros de combate que aquele brigadeiro estúpido e vil ordenava que disparassem. Mas os soldados não se deixaram iludir e compreenderam de que lado estava o futuro, reduzindo à inutilidade aquela figura ridícula de carcereiro inquisitorial e o meu capitão regressou com a certeza da vitória, consumada de todo, mais para o fim da tarde quando o sátrapa foi recolhido num blindado e levado sem deixar lembrança. O que se passou depois, já a história o havia visto 600 anos antes, no tempo da revolução do qual fui também participante com a mesma alegria, a mesma juventude e a mesma determinação do meu capitão. Também Álvaro Pais quase logo a ter acordado a cidade para acudir ao Mestre, logo que nos viu rua fora a reclamar o que os donos do reino nos deviam, procurou acorrentar-nos, dispondo-se a acordos com a rainha e incitando o que haveria de ser nosso rei por direito e dever da revolução, a impedir que entrássemos no bairro judeu, procurando salvar o dinheiro, o seu naturalmente. Diz-nos o nosso estimado José Mattoso que nas cortes de 1385, dois anos após lutarmos pela pátria, uma pátria da qual fizéssemos parte, os procuradores pediam ao rei, o nosso I D. João, para restabelecer a ordem, e nessa ordem, claro, aparecia o reprimir severamente as desordens e as expropriações de bens dos «milhores ou de milhor entender e mais manteúdos e naturaes e aparentados no Reyno e nos lugares». Como pode ver, meu capitão, tantos séculos a separarem-nos e a litania não mudou muito. Também o meu estimado capitão viu no caminho libertador da revolução a sua Alfarrobeira e se nós ainda aguentamos 100 anos até eles voltarem, no seu tempo, chegou ano e meio após a esperança ter nascido. Lamentavelmente o rio da sua vida estancou a corrente subitamente não o deixando viver as esperanças e a justiça pelas quais empenhou a vida naquela noite, mas por outro lado, evitou que pudesse olhar e sentir o regresso dos filhos e dos netos desses anos podres e de chumbo, esses vadios insolentes que hoje se espolinham em cima do poder com a mesma arrogância estúpida e insolente dos seus antepassados, sabendo que também agora vão ficar impunes. E veja meu estimado Salgueiro Maia, quando a nação, precisava de alguém com o dedo apontado ao mar, ao infinito, ao sonho, como aquele pequeno príncipe que viu a luz no Porto medieval, aparece-nos um néscio assentado no palácio. Uma criatura tola e oca que teima em dar razão duas vezes a Montaigne, mas pela negativa, pois onde o filósofo dizia que mais vale ter uma cabeça bem feita de que uma cabeça cheia, ele consegue tê-la vazia e mal feita. O meu capitão ainda o conheceu, mas nesse tempo este aparvalhado arriscava desenhar umas letras nas quais com grande esforço ainda conseguíamos admitir uma frase, mas nos dias de hoje, já não fala, só se ri, lembrando-nos o Manuelinho de Évora. Como vê, meu estimado amigo, une-nos esse abraçar a pureza de uma causa, o caminhar, quantas vezes corajoso e sempre anónimo, por ideais tão simples como a liberdade, a justiça, essa fraternidade humana que nos pudesse propulsionar para além de nós próprios e impedir que levantassem de novo a cabeça, estes arcontes bastardos cavalgando em cima de um poder que assaltaram e do qual bebem até se saciarem, certos de não serem punidos, pela protecção que, antes como agora, uma guarda pretoriana lhes vai garantindo. Mas que importa meu capitão, pois mesmo tendo de os suportar de novo, estes sabujos do dinheiro, já não nos podem retirar aqueles dias felizes de liberdade, de alegria, de festa, desse abraço que correu de norte a sul, já não nos podem tirar ou impedir de recordar e quem sabe, se um dia não voltaremos a acordar numa sociedade decente e daremos caminho definitivo a esses excrementos que a história teima em reanimar a cada centúria. No tempo e no lugar em que repousa, receba meu estimado capitão Salgueiro Maia um abraço sentido deste cidadão


Afonso Anes Penedo

 

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