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01/12/15

CARTA DE NATAL


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Esta carta é para ti, pequenina Beatriz. Talvez um dia, a possas ler, ou talvez imaginá-la quando souberes juntar as letras que formam palavras. Todos os dias me acode, do fundo da memória, esse lugar onde guardamos os instantes, os mais felizes e os mais trágicos, e por vezes, até os amores perdidos, mas escrevia eu, que todos os dias me visita aquele momento em que nos conhecemos, para ser mais preciso, em que te olhei, pois tu, minha pequenina, nada podias ver. Quando chega esse convívio da memória, contigo, o que sobressai sempre, é o silêncio, o grande silêncio que senti, como se estivesse no palco de um teatro perante uma peça encenada. A ausência de sons e algumas pessoas vagueando incrédulas perante o acontecimento. Lembro-me de caminhar, devagar, suspenso, ainda sem acreditar no que os olhos identificavam e, foi a ti, pequenina Beatriz que primeiro vi. Seis mãos seguravam trémulas o teu pequenino corpo, o que significava que te amparavam como se estivesses deitada. Cruzamo-nos e contornei o primeiro destroço e foi então que vi a mãe, mas compreendi que já não estava, os seus sonhos tinham acabado de nos deixar, viajavam talvez num daqueles grandes navios que tão perto nos olhavam. Não, ainda não sabia que era a mãe, só mais tarde vim a conhecer esse laço que vos unia. O olhar encontrou então a avó e de novo me deparei com outra viagem, outro adeus, alguém que estava prestes a deixar-nos. O que se passou a seguir, a memória já tem alguma névoa, alguém gritava nas minhas mãos e voltamo-nos a encontrar. Ajoelhado, os meus olhos encontraram os teus, azuis, como o mar ali tão perto, ou como o infinito céu daquela tarde de estio acalentador, os olhos azuis, quietos e longínquos e os pequenos novelos aloirados do teu cabelo. Estavas serena, muito direita, como se dormisses um sono longo e terno. O tempo passava, olhava-te e nada compreendia. Falei, lembro-me que falei, entre os gritos de quem permanecia nas minhas mãos, mas continuava a ser o silêncio a rondar-me, a ocupar todo aquele espaço e o movimento sonâmbulo das pessoas, e os automóveis, centenas, mas não se escutava o seu ruído. Quantos minutos passaram não consigo recordar. Por fim, o silêncio parou, e a vida pareceu recomeçar, as sirenes bombardeando o sossego, uma a chegar atrás da outra, e foi para ti, pequenina Beatriz que primeiro correram. Um olhar bastou para compreenderem que toda a atenção deveria recair em ti. O que ocorreu depois, não sei, porque os meus passos me levaram de saída e ainda agora me pergunto, se vim embora ou fugi.

O tempo vai passando e vai deixando essas marcas ponteadas que tendem a encobrir a realidade. Continuo a passar ao quilómetro sete mil e trezentos e de todas as ocasiões em que atravesso aquele espaço, é o silêncio que ouço, aquele grande silêncio, como se olhasse o mundo através de uma campânula. Os aviões continuam a cruzar o céu, descendo vagarosamente. Os navios, outros, permanecem acostados, como se ainda fossem os mesmos, e ao fundo, o mar, o infinito espaço de água. Contudo, desde aquele dia, é como se não encontrasse ali os aviões e os navios, apenas vejo aquele silêncio e os teus olhos azuis, serenos, olhando, interrogando o nada.

Para ti, também o tempo foi caminhando e aos pouquinhos alguma normalidade foi certamente regressando. Voltaste à escola, mas falta algo, só não compreendes ainda com exactidão o quê. Em breve, será Natal e por isso te escrevo esta carta. O velhinho de barbas brancas irá trazer-te muitas prendas, a mesa estará repleta de pessoas que te vão sorrir e cobrir-te de afectos. Ao canto da sala, a árvore coberta de luzes, e o presépio, com muitas personagens, mas este ano e para todo sempre, no teu presépio vão faltar duas rainhas. Ficaram presas naquele silêncio que desde aquele dia viaja comigo.
  

Afonso Anes Penedo



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