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01/12/15

CAUSAS DA DECADÊNCIA E QUEDA

António Mesquita




Job e os seus amigos



"A palavra era acção. Levantar-se numa reunião e falar verdade era acção, porque era perigoso. Sair para a praça...era formidável, uma descarga de adrenalina, uma golfada de ar. Extravasa-se tudo nas palavras...Hoje, isso é já inverosímil, hoje é necessário fazer alguma coisa, e não dizer. Pode-se dizer absolutamente tudo, mas a palavra já não tem nenhum poder. Gostaríamos de acreditar, mas não podemos. Todos se estão nas tintas para tudo, e o futuro é uma porcaria."

("O Fim do Homem Soviético" de Svetlana Aleksievitch)

O prémio Nobel da Literatura deste ano é uma formidável recolha de testemunhos vivos. Do 'apparatchik' mais fidelizado ao entusiasta da 'perestroika'. Como eles viveram o passado antes e depois da 'Queda do Império'. De um império que não apresentava, aos olhos dos Ocidentais, os sinais explícitos de uma decadência como a da Antiga Roma. Mas se as religiões orientais tinham dissolvido o paganismo romano e o culto do imperador e das virtudes militares, se a influência dos costumes estrangeiros através da expansão do império enfraquecera o carácter dos cidadãos e apagara a imagem dos antepassados, coisas que nunca poderiam confundir-se com um 'cerco bárbaro', como o 'cerco capitalista' com que os mais doutrinários pretendem explicar a Queda da URSS, há mais do que um paralelo a tirar desta comparação histórica.

Porque há de facto um auto-isolamento e um movimento de auto-preservação num ambiente objectivamente hostil, com recurso à linguagem dupla e à ocultação da realidade que faltam ao modelo romano, talvez por este ser, sem qualquer ambiguidade, o único super-poder do planeta, mas a 'decadência' fez o seu trabalho de destruição nos dois casos e por fim ocorreu o desmoronamento, de uma forma mais ou menos caótica, mas não menos simbólica, com a tomada de Constantinopla, ou, como que auto-programada, pela implosão do sistema.

Contudo, toda a reflexão sobre o fim da URSS do ponto de vista dos historiadores, confronta-se com a experiência humana que, essa, não se deixa interpretar como objecto da história ou de qualquer ciência.

É o mérito maior deste trabalho de Svetlana Aleksievitch o de nos permitir perscrutar essa dimensão 'invisível', mas a mais fundamental.

Como o relato desse membro do partido, empenhado nos grandes ideais da Revolução e fiel ao partido para lá da razão, que foi vítima  das purgas de Estaline, nos anos trinta, sem qualquer justificação, que sofreu a prisão e a tortura e que só muito mais tarde foi reabilitado. Afinal, tinha sido um 'erro'. Perdoou ao ditador, viveu o tempo suficiente para assistir à reviravolta de Gorby e de Eltsin, e à anulação de tudo em que acreditava. O seu neto, que assistia à entrevista, calado por respeito ao ancião, quando lhe foi pedida a sua opinião contou algumas anedotas conhecidas sobre os dinossauros como o seu avô. Depois da morte, conta-nos Svetlana, o velho deixou o seu apartamento de três assoalhadas, em Moscovo, não à família, mas ao seu querido partido.

Esta história tem o mesmo significado do Livro de Job. E não é a política que a pode explicar, mas a religião.

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