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01/04/16

CARTAS DE SANTA MARIA


(Ruínas do Palácio de Cristovão de Moura)

Barca d’Alva, 31 de Março 

Cheguei há três dias e por aqui fiquei neste pequeno lugar que nem aldeia chega a ser. Cerca de 40 casas, duas pequenas ruas, dois cafés e a N221. O resto é uma paisagem avassaladora e o rio. Com o curso sustido cerca de 15 quilómetros a montante, transforma-se em lago quando ladeado de duas margens portuguesas. Dizem que a sua riqueza são os olivais, os vinhedos e as amêndoas. Estas últimas engrandecem a beleza da paisagem nos meses finais do Inverno. No Verão o calor estiola. Em 1887, a linha férrea que sai do Porto para Leste, terminou aqui a construção do seu 200º quilómetro e o lugar passou a constar do mapa. A serenidade e a formosura do espaço mereciam esta paragem, mas também me sentia cansado de tão longa marcha. Vim ao longo da N108. Não trouxe máquina fotográfica, preferi que fossem os olhos a levar tudo que neles coubesse. Só a chuva me reteve um dia ou outro. Permiti-me o luxo de uma dormida no antigo convento de Alpendurada. Os claustros e a paisagem fizeram compensar o custo da estadia. O deslumbramento do Douro no entardecer. Em Ancede procurei o mosteiro de Santo André erguido em couto doado pelo primeiro rei nesse longínquo século XII, esteve na posse dos cónegos regrantes de Santo Agostinho até 1559, ano em que, pasme-se, passou para a jurisdição do mosteiro de S. Domingos de Lisboa. Como tantos edifícios medievais que os séculos foram deteriorando, também este sofreu alterações e acrescentos de outras artes que não a românica inicial. No entanto, as suas pedras seculares prosseguem a sua viagem no tempo, sobranceiras ao rio, voltadas a sul de onde recebem o sol que lhes alimenta a alma. Não podia deixar de parar em Tormes. Visitar a casa do escritor, reviver A Cidade e as Serras, nunca é demais, é quase um dever. Caminhar em silêncio pelas salas, pelos quartos, olhar o horizonte pelas janelas em guilhotina e de pequenos vidros quadrados. Sempre me encantou o terreiro que permite o acesso à casa. Deixei-me ficar largas horas sobre o varandim que se debruça sobre a paisagem. Aregos do outro lado e o curso tranquilo do rio. Aguardei pelo entardecer e afastei a recordação nostálgica de outras visitas anteriores. Permiti que os olhos vadiassem, sem tempo, sem pressa e que guardassem o que lhes apetecesse. A paisagem que nos visita até à Régua, chega a ser esmagadora. O que a história nos diz é que Peso era o lugar que ficava na parte mais elevada e que a Régua, era o espaço ribeirinho. Com a chegada do comboio, cresceu a Régua, o suficiente para se encontrar com o Peso. Atravessei o rio e segui pela N222, nesse troço até ao Pinhão que dizem ser a melhor estrada do mundo. É difícil deixar descansar o olhar face ao deslumbramento da natureza com as montanhas descendo em socalcos. Em Folgosa, voltei a exceder-me e alojei-me no Folgosa do Douro. O preço seria compensado por esse momento extraordinário de ver o amanhecer romper a noite e erguer-se num eflúvio de luminosidade sobre um caudal de rio imobilizado. Na margem contrária, o comboio deslizava, quase perdido no tempo, silencioso como um fantasma. A partir do Pinhão quase abandonei a estrada e segui ao longo da linha férrea. É uma caminhada solitária e encantatória. A mistura de uma via centenária, as montanhas rasgadas pelos canteiros das vinhas, um rio quase irreal na sua sumptuosidade e um silêncio povoado de sons imperceptíveis e longínquos, quase nos arranca do estado real e nos mergulha numa fantasia soberba. Assim cheguei há três dias. No segundo dia desta estadia, subi a Castelo Rodrigo à aldeia erguida como atalaia sobre as terras que se estendem a perder de vista. Sempre me surpreenderam as ruínas do palácio do traidor Cristóvão de Moura. Surpreender não é bem o termo, há um certo fascínio que me atrai. A destruição que sobrou do incêndio, perpetuada no tempo como lembrança da miséria e cupidez humanas. Ao longe, ou sob a iluminação nocturna, parece enfeitiçar-nos, deixa-nos o olhar em pensamento de reflexão. Esmaga pela grandeza e pela decadência. Dizem-me os prospectos turísticos que esta Barca d’Alva se localiza num bonito vale na margem esquerda do Douro, integrada no espaço do Parque Natural do Douro Internacional. Nos passos que por aqui dei em deambulações de olhares e lembranças, veio-me à memória palavras que creio de António Cabral e que a voz de Adriano, pujante e viva nos cantava, “Foi em Barca d’Alva/ quando o sol nascia/ uma ceifeira cantava/cantando vertia/trovas na fronteira/quando o sol nascia (…) Moça tão formosa/ não vi na fronteira/ como uma ceifeira/ que cantava rosa”. Amanhã, aos primeiros alvores do dia, deixo este lugar. Vou atravessar o Águeda pela antiga ponte ferroviária em direcção a Boadilla.

Fernão Vasques*


* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.

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