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01/09/16

CARTAS DE SANTA MARIA


Florbela Espanca (www.contioutra.com)


O centro da vila permanece imobilizado no tempo como se Florbela Espanca estivesse a descansar e voltasse em breve aos lugares da sua infância. Ao lado, o palácio ducal, pela sua imponência, parece um absurdo no espaço errado. A poetisa que cedo mudou o nome de Flor Bela Lobo para Florbela d’Alma sobrevoa ainda, na minha imaginação, estes lugares. Vim de novo visitá-la na sua campa fria e marmórea de um branco triste e invernoso. É sempre uma visita de admiração e deslumbramento, de fascínio também. Tem sido de certa forma injustiçada quando no-la mostram como instável, por vezes até desequilibrada e histérica. Florbela foi sobretudo incompreendida. Dos homens que encontrou não souberam amá-la como a poesia que expressava. Amaram-na pelo que escrevia e ela procurava quem a amasse com o ardor e o romantismo das palavras que lhe saíam aos borbotões da alma. Se tu viesses ver-me hoje à tardinha. Não à tarde, ao fim do dia, mas à tardinha, o diminutivo a engrandecer o momento a caracterizar o estado da alma, a sua carência. A essa hora dos mágicos cansaços. Não é, essa fadiga que nos aborrece, que nos desconsola, que nos indispõe, mas antes a dos mágicos cansaços. Quando a noite de manso se avizinha. Faz-nos aproximar do crepúsculo em três momentos que parecendo diferentes situam o mesmo instante, à tardinha, na hora dos mágicos cansaços e quando a noite de manso se avizinha, vagarosa e silenciosa, para nos dizer como gostaria então de ser amada, e me prendesses toda nos teus braços. Só isso, apenas isso, o seu amor não carecia de mais nada nesses instantes e creio que foi essa sua necessidade de amor que não foi entendida e satisfeita. Sou aquela que passa e ninguém vê…/ Sou a que chamam triste sem o ser… Aqui expressa a incompreensão do mundo pelos seus sentimentos, para concluir que, Sou talvez a visão que alguém sonhou, / Alguém que veio ao mundo pra me ver,/ E que nunca na vida me encontrou. De facto, tudo o que desejava estava nos seus poemas e não topou com alguém que os interpretasse em gestos e sentimentos transformando em realidade os seus sonhos. Num dos seus mais belos poemas, Teus olhos, reaviva essa contradição entre o amor que desenha para si, ao qual se rende sem remissão e o que na verdade a vida lhe oferece. Esses olhos onde, ficaram os meus palácios moiros,/ Meus carros de combate destroçados,/ Os meus diamantes, todos os meus oiros/ Que trouxe d’Além-Mundos ignorados! Depois de toda a luxúria com que enaltece, os olhos do seu amor, termina aceitando a derrota da sua demanda, Berço vinde do céu à minha porta…/ Ó meu leite de núpcias irreais!.../ Meu sumptuoso túmulo de morta!.... Nunca descansou, no entanto, dessa procura, entregando-se por vezes na sua poesia a um amor que não via, mas acreditava ver, Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida./ Meus olhos andam cegos de te ver./ Não és sequer razão do meu viver/ Pois que tu és já toda a minha vida! Deixou-nos pelo menos esta poesia tão arrebatadora tão amante que nos ajuda nos amores e desamores que a vida nos reserva e é sobre os seus poemas e dos seus e dos nossos amores incompreendidos que conversamos nas largas horas das nossas visitas. A caminho de Vila Viçosa, desci por Arronches e Campo Maior, a terra do comendador que é tão benemérito, tão dadivoso, tão enaltecido que só lhe falta a espadinha ao lado como no poema do José Niza. Evitei Badajoz porque a 15 de Agosto se relembrava a matança de 1936, quando um miserável, um infame que deu pelo nome de Juan Yague, o qual sob as ordens de um vadio, um insurecto com o nome de Queipo de Llano, ordena o fuzilamento de milhares de soldados e milicianos que defendiam a República. Nem de Elvas me aproximei, contornei a cidade e caminhei para Juromenha. Nesta pequena aldeia, deixei-me tomar pela melancolia, por esse estado de alma que nos tolhe a força de vontade e nos leva para as recordações. O dia estava a meio, no ponto em que o sol inicia a sua descida e vai virando se sul para oeste. No horizonte, as águas do Guadiana inchadas pela retenção no Alqueva formavam um lago sem limites. Escutava-se o silêncio e o tempo imobilizou-se, como se procurasse a eternidade. Foi nesta moldura que decidi escrever uma carta à mulher do meu futuro. Aguardo-te mulher do meu futuro. Vem e enche o leito seco dos meus rios com o caudal intenso dos teus sonhos. Sim, vem porque a minha alma sucumbiu naquela tarde em que o crepúsculo se apagou quando o olhar de uma mulher iluminou outro navio que atravessava o horizonte. Agora, restas tu mulher do meu futuro, a quem poderei dizer, como Santo Agostinho, que já te amava antes de saber amar. Vem, dá-me a tua mão e abraça a minha para não me perderes e eu não me perder de ti. Faz-me arrepiar com o toque da tua pele, como a terra quando treme abanada por estertores vulcânicos. O meu caminho há-de ser o teu, seja onde for que ele conduza. Vem até mim mulher do meu futuro. Deixa que os meus olhos vejam de frente os teus, na descoberta de uma estrela acabada de nascer. Deixa-me sentir a beleza do teu corpo, a pele macia, a ternura dos teus afectos misturada com a carência dos meus. Deixa-me pousar na serena geografia do teu colo e saborear o tranquilo pulsar da tua vida no renascimento perene de quimeras impossíveis. Vem, chega depressa mulher do meu futuro para que os meus olhos rebeldes possam viajar pelo teu peito e fomentar a insurreição do teu corpo. Quero que venhas como uma rosa, de caule sólido, e de ti brotem flores amarelas e vermelhas, uma mistura de cor de fogo, o amarelo da amizade e o vermelho do amor, transformadas em tochas ardentes e eternas como as que lembram os heróis. E o meu olhar de requiem renascido há-de entrar em ti como numa floresta mágica, cheia de rumores e mistérios para transformar o outono do teu corpo, numa primavera vibrante, plena de sol e de luz, como uma harpa tocando o hino da alegria. Quero passear por ti com os dedos trementes, como um cego decifrando os símbolos. Vem, não tardes para que o meu olhar insubmisso seja o líder da rebelião que descerá do teu sorriso e se estenderá pelo convés do teu navio como a água de um rio descendo em catarata cantante e descontrolada. Quero voar em ti como uma nave vogando pelo universo, perdida no esplendor nocturno da beleza infinita. Vem, aproxima-te com a ternura da madrugada e deixa que me achegue à tua alma para abrir o livro da fantasia que nela vive. Quero folheá-lo, página a página, navegar nas palavras como uma galera descobridora, procurando mundos, rotas desconhecidas, mares nunca antes navegados. Quero sentir a tua beleza com a elegância das ogivas góticas, imortal e sedutora e me torne cativo do teu voo suspenso como as cúpulas das grandes catedrais. Chega depressa e com os rios da tua ternura apazigua esta minha sede de infinito. Mulher do meu futuro, não desejo que tenhas apenas o brilho de uma estrela, mas antes me abraces no espantoso feixe luminoso de uma constelação, não quero que sejas só uma montanha, mas uma cordilheira, onde possa caminhar nos trilhos infindos do teu corpo para saciar esta sede intensa, nas águas que descem das neves que se derretem no cume sereno da tua ternura. Aguardo-te, mulher do meu futuro. Anseio que cubras a solidão da minha alma com toda a poesia que trazes no olhar. Vem, estende pela planície do silêncio onde habito, as águas do Nilo, as areias de Atacama, o canto dos monges nas montanhas drusas, os versos de Omar Khayam, o cântico dolente e vibrante do muezim planando como uma névoa sobre o deserto. Oferece-me a vida toda que está em ti. Vem e visita as minhas madrugadas sem sono com os ramos amantes do teu corpo e protege-me dos medos nocturnos. Quero que chegues como a água e me faças viver como o vento. Não tardes, mulher do meu futuro.

Fernão Vasques*
Vila Viçosa, 31 de Agosto 

* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.



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