StatCounter

View My Stats

04/11/16

CARTAS DE SANTA MARIA


(Mértola)

Mértola, 31 de Outubro

O Outono alcançou-me a meio do mês entre a chuva branda e a torrencial, esta breve mas mais caudalosa, arrastando na sua força a terra que resistia, e quantas vezes as construções humanas que se erguem a eito a mando dos interesses abjectos e gananciosos de gente que entende que o mundo deve viver sem lei e sem normas, acabam alagadas ou destruídas. A lei do Mercado, dizem alguns, plenos dessa sapiência bacoca que além de apalhaçarem a comunidade colectiva do território, demonstram, quantas vezes, que ainda não chegaram a estrear a cabeça. Depois, chegam estas águas, reclamando espaço e leito que lhe foi subtraído. Mas por agora, ressalta mais a amenidade do tempo. As folhas vão tombando nessa dor final de se transformarem, e como alento definitivo da sua amargura, emulam-se em cores sobrenaturais, adquirindo uma beleza que nos deixa também nessa melancolia amarga e bela do que se está a alterar à nossa volta. Já tombadas arrastam-se ainda pelo chão, numa recusa em partir que só a acção do vento e humana consegue por fim vencer. Estou sentado na esplanada do “Terra Utópica”, como se estivesse numa varanda sobre o rio, a meio da encosta. Invade-me um desses encantamentos de serenidade que certos locais nos proporcionam. O Guadiana, vencido o Alqueva, deixa-se ir, vagaroso, sem pressa, contemplando a paisagem das margens. Ainda tem sessenta quilómetros de passeio até que o mar lhe salgue as águas. Esta pequena cidade, oferece-nos também assim um momento de placidez, de devaneio das ideias ou, se o desejarmos, de profunda reflexão do tempo dos Homens. E este espaço brinda-nos com razões acrescidas para isso. Há visitas que deviam constituir obrigação e aqui, nesta terra onde me encontro, o Museu Municipal, com os seus núcleos romano e de arte sacra e o campo arqueológico, devem fazer parte desse conhecimento que não devemos, nem rejeitar nem ignorar. Não há presente sem passado. Há três polos a que chamo, com um pouco de elasticidade académica, civilizacionais, que atravessaram Mértola, como aliás parte substancial do país que hoje somos. Os Romanos deixaram-lhe Mirtilis Júlia como testemunho da sua presença. Dos Visigodos que planaram sobre a Península ao longo de duzentos anos e ainda menos na parte ocidental, pouco ficou. Serviram-se das estruturas romanas e ajustaram-se ao que encontraram. Algo me diz e se retém no meu pensamento que os Visigodos não eram propriamente um povo que se recomendasse. Diz-nos Eduardo Manzano que desde que se instalaram na Hispânia, entre 507 e 711, 14 dos seus monarcas, entre 27, foram depostos por, conspirações, assassinatos ou mortos em batalhas pelo poder. Por fim, chegaram os Árabes à península e para além de representarem um avanço civilizacional, transportavam uma nova religião, um outro Deus que muito se ajustava à intensa luz que a Sul se usufrui. Assim se instalaram na sua Martulá por quinhentos anos. Os trabalhos arqueológicos das últimas décadas com destaque para a acção de Cláudio Torres, permitiram trazer ao presente essa herança islâmica que viaja em nós e que ao longo dos séculos, viveu afundada pelos diversos regimes que se assumiam com esse catolicismo intolerante. Esse renascimento do árabe que também somos, permitiu que hoje uma das figuras da cidade, seja, Ibn Qasi, um sufista que chegou a liderar uma Taifa de Mértola que teve vida breve e morreu com o seu criador. A travessia do Alentejo, as pequenas ruas de Mértola, a tranquilidade arrebatadora destes espaços, impelem-nos naturalmente para o pensar reflexivo. Por todo este espaço territorial a que chamamos «o nosso país», passaram vários Deuses, únicos e verdadeiros. Ao longo da nossa história, encontramos 500 anos de um Deus islâmico, levamos 700 anos de um Deus cristão, além de um Deus judeu mais tímido, mais guetizado. Na óptica de cada crente, o seu Deus sobrepõe-se a todos os restantes, pela verdade que assume, pela prática que aponta, pela razão dos seres humanos que o seguem. Mas a grande questão é que qualquer um destes Deuses fala com os seus cordeiros por interposta pessoa, através daqueles que se dizem intérpretes das suas vontades e desejos e aí temos o início de uma saga que nos vem conduzindo a estradas sem saída. No contexto português, o Deus cristão sobrepôs-se aos restantes e literalmente varreu-os do território e aos que teimaram em desobedecer, em permanecer na terra que os viu nascer e crescer ao longo de gerações, imolou-os em girândolas de fogo. Nunca tremeu a mão aos torturadores inquisitoriais no seu trabalho de açaimar os relapsos. Hoje atravessa-nos o horizonte o que chamamos de «fundamentalismo islâmico». De novo e em nome de Deus as cabeças rolam decapitadas do Sael ao Iraque. Para nosso descanso, o democratíssimo clã Saud, uma casta que se apodera, em proveito próprio, das riquezas da península arábica, distribui o seu tempo entre a vergasta e a decepação dos que não se acolhem debaixo do seu mundo protector. Os seguidores do outro Deus destas terras de paisagem árida e quase estéril, não se detêm na sua euforia salvífica e na sua intolerância e inclemência semearam a Palestina de pequenos Auschwitzs, mais lentos, menos gasosos mas suficientemente mortíferos, enquanto dolentemente abanam a cabeça junto ao Muro. Vivo entre o canto dos monges que a Norte acordam a solidão ao amanhecer e a luminosidade do Sul que arrasta o canto que chama à oração. Na perseguição da perfeição, os seres humanos na sua versão masculina criaram Deuses para um melhor acolhimento dos valores, da ética e da moral que entenderam como justas e correctas para a Humanidade. Seguiram-se-lhe os intérpretes e Deus ficou cada vez mais longe, mais alto, impossibilitado de escutar as maldades daqueles, praticadas em seu nome. Por onde passaram, sempre levaram, a espada e o Livro, e o registo que deixaram, nas Américas e em África, cabe no conceito de genocídio. Hoje, levam bombas e democracia, mas a intolerância e a mortandade é a mesma e no que chamam a grande nação democrática, escolhe-se em breve entre os tambores da guerra e os tambores da loucura. E a nossa passividade segue este cortejo fúnebre da História. Quando me é possível olhar em redor, facilmente encontro a Beleza da Vida e ocorre-me de imediato a frase chave de Duby, «Deus é luz». O escritor Victor Serge numa das suas obras (1), oferece-nos a imagem de Deus na versão simples de um diálogo entre dois proletários da revolução russa: «- És crente, Maria? (…). – Não acredito em beatices, Kostia, tenta entenderme. Acredito em tudo o que é. Olha à nossa volta, olha! O seu rosto de lábios bem recortados voltou-se impulsivamente para ele, para lhe mostrar o Universo: aquele céu simples, as planícies, o rio invisível sob os juncos, a amplidão. – Não sei dizer em que é que eu acredito, Kostia, mas acredito. Talvez acredite apenas na realidade. Tens de me entender. (…). – Tens razão, Maria, sou crente como tu, vejo… A terra, o céu e a própria noite, onde as trevas não existem, uniram-nos inexprimivelmente, testa com testa, misturando-lhes os cabelos, olhos nos olhos, boca contra boca, os dentes entrechocando-se levemente. – Maria, amo-te…». À minha volta o dia apagou-se, do horizonte restam apenas as luzes, as que rompem pelas janelas das casas e as que dão um ar de magia às ruas da pequena cidade. Ao longe, num traço minúsculo, a ponte que amanhã me leva para Leste. Deus está em toda a parte, mas os fanáticos, não o vêem, permanecem cegos numa estrada estreita onde apenas vislumbram o seu endeusado Eu.

Fernão Vasques* 

As guerras são tapetes.

Por debaixo deles se ocultam
as imundícies dos poderosos. 

Mia Couto 
(1) O Caso do Camarada Tulaev, Letras Errantes, Lda., Silveira, Junho de 2016.


* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.

Sem comentários:

View My Stats