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01/01/17

ELOGIO DE ÁLVARO DE CAMPOS


Mário Martins


https://www.google.pt/search?q=alvaro+de+campos+imagens


Se para o clássico Ricardo Reis, Caeiro era um objectivista e Campos um emocional, “o que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é escrever prosa ritmada com pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins rítmicos (…)”. Sem acompanhar a crítica de Reis, essa singularidade emocional de Campos é realçada pelo próprio Fernando Pessoa: “Se eu fosse mulher – na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas – cada poema do Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia…”.

Poesia ou prosa, como não compreender a grande conta em que Campos tinha as suas Odes Triunfal e Marítima?: “(…) até hoje (1925) (…) só houve três verdadeiras manifestações de arte não-aristotélica (que, para Pessoa, é a verdadeira arte). A primeira está nos poemas assombrosos de Walt Whitman; a segunda está nos poemas mais que assombrosos do meu mestre Caeiro; a terceira está nas duas odes – a Ode Triunfal e a Ode Marítima – que publiquei no Orpheu. Não pergunto se isto é imodéstia. Afirmo que é verdade.”

Não custa imaginar a presença da musa inspiradora nessas horas de lirismo febril em que o poeta anseia fundir-se com as máquinas do progresso: “Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!/Ser completo como uma máquina!/Poder ir na vida triunfante como um automóvel último modelo!/Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,/Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento/A todos os perfumes de óleos e calores e carvões/Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!” (Ode Triunfal); ou com o mar largo: “Toda a vida marítima! tudo na vida marítima!/Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina/E eu cismo indeterminadamente as viagens./Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte!/Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas!/As solidões marítimas, como certos momentos no Pacífico/Em que não sei por que sugestão aprendida na escola/Se sente pesar sobre os nervos o facto de que aquele é o maior dos oceanos/E o mundo e o sabor das cousas tornam-se um deserto dentro de nós! (…)” (Ode Marítima). Depois da histeria o apaziguamento: “Ah, como pude eu pensar, sonhar aquelas cousas?/Que longe estou do que fui há uns momentos!/Histeria das sensações – ora estas, ora as opostas!/Na loura manhã que se ergue, como o meu ouvido só escolhe/As cousas de acordo com esta emoção – o marulho das águas,/O marulho leve das águas do rio de encontro ao cais…,/A vela passando perto do outro lado do rio,/Os montes longínquos, dum azul japonês,/As casas de Almada,/E o que há de suavidade e de infância na hora matutina!...” (Ode Marítima).

Para a pessoana Clara Ferreira Alves, “o Campos é muito mais que o Pessoa histérico, é o génio à solta”, e o aclamado “Tabacaria” “um poema fundador da modernidade, e não apenas da modernidade portuguesa”: “Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu./Estou hoje dividido entre a lealdade que devo/À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,/E a sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.”

Com o verso “Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!” Álvaro de Campos, culmina, em êxtase, a Ode Triunfal. Por alguma razão, o engenheiro naval  definia o empregado de escritório, que Fernando Pessoa também foi, como “um novelo enrolado para o lado de dentro”…

PS: A “geringonça” fez 1 ano. O que pode explicar esta inesperada longevidade e a sensação de que está para durar? Vários factores haverá, entre eles a habilidade política de António Costa, mas a cola que realmente une partidos tão diferentes e com políticas tão opostas é a vontade de manter fora do governo os partidos defensores de uma receita única de austeridade. Este surpreendente pragmatismo pós-eleitoral da esquerda, para além de aligeirar a carga austeritária sobre a maioria dos cidadãos, produziu já os efeitos benéficos de acabar com o arco da governação e de demonstrar a Bruxelas novos caminhos de chegar aos objectivos. Tudo isto, é claro, na corda bamba da dependência dos empréstimos e das respectivas taxas de juro…    

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